Biografia de um leitor desconhecido
O que se pode saber sobre a vida de uma pessoa a partir de um cupom fiscal esquecido dentro de um livro?
Em julho de 2021 eu comprei um livro via Estante Virtual. Edição em capa dura, impecável, com a sobrecapa intacta. Um livro editado em 2001 e adquirido originalmente em 2005. Dentro dele, dois comprovantes, também intactos, cuja impressão delével, feita para durar pouco, se conservara nítida, protegida por 500 páginas de papel cor de nata.
Um dos comprovantes era o cupom fiscal que registrou a compra daquele livro, ao qual foi anexado, com um grampo, o tíquete de compra com cartão de débito. Esse tíquete informa o nome completo do comprador, dois prenomes e dois sobrenomes. Mas digamos que ele se chamasse João, como o autor do livro que preservou aqueles testemunhos de consumo.
Dos livros comprados por João, o que chegou até mim foi o Famous women, tradução de Virginia Brown (1940–2009) para o De mulieribus claris, de Giovanni Boccaccio (1313–1375). João pagou por ele uns 89 reais. O volume estava com desconto de 30% — vai ver não fez muito sucesso, ao menos não no Brasil.
Ele também comprou X-Treme Latin: All the Latin You Need to Know for Survival in the 21st, de Henry Beard (por R$ 28,10), que me parece ser um compilado de frases em latim para se usar em situações contemporâneas, A Splendor of Letters: the Permanence of Books in an Impermanent World, de Nicholas A. Basbanes (por R$ 55,98), e Gaveta de tradutor, de José Paulo Paes (por R$ 29,00).
Bom, parece que João gostava de livros e de línguas e devia ter alguma familiaridade com o latim — a edição de Famous women é bilíngue latim-inglês. Talvez fosse tradutor ou revisor de textos, porque uma busca no Google por seu nome completo resultou em um CNPJ de microempreendedor individual associado a essas atividades. Acho que morava em Perdizes, perto da PUC-SP, o que combina com a atividade editorial. Mas foi só, não encontrei outras pistas sobre sua profissão.
João fez essa compra no dia 9 de junho de 2005, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Passou pelo caixa às 21h21, quando a loja já deveria estar perto de fechar. Era uma quinta-feira de inverno. O que João estaria fazendo na rua a essa hora? Não sei por que, mas acho que estava sozinho.
Talvez ele tivesse passado na livraria depois de uma sessão de cinema nas salas do Conjunto. Digamos que ele tivesse assistido a um filme não muito longo, iniciado às 19h. Depois do filme, ele entrou na livraria e tomou um café, antes de passear pelas prateleiras. Deve ter dado atenção especial à de livros importados, pois três de suas aquisições foram edições estrangeiras.
Era ainda o primeiro governo Lula, o dólar valia R$ 2,48. Vejam que a edição do X-Treme Latin custou quase o mesmo que a edição nacional do Gaveta de tradutor. De qualquer forma, foi uma bela compra: R$ 201,34. Esse valor, corrigido pelo IGP-M, equivaleria hoje a R$ 645,20.
Pensando melhor, João talvez tenha tomado café depois de comprar os livros. Ele pega a sacola amarela, acomoda-se em uma das mesinhas do Viena, o café que tem (já tinha em 2005?) dentro da livraria, retira os volumes e começa a folheá-los. Pode ser que ele não tenha tomado café, pois atrapalharia o sono. Mas se ele era revisor e tradutor, e se precisasse trabalhar à noite, um café seria uma boa pedida.
Bom, João pede um café ou um chá ou uma taça de vinho, pede um brioche ou um sanduíche ou uma sopa. Enquanto aguarda o pedido, ele folheia seus livros. A refeição chega, ele recolhe os livros e guarda automaticamente o cupom fiscal entre as páginas 466 e 467 do Famous women, justamente no início da biografia da rainha Joana de Nápoles, que chamara sua atenção.
João chega em casa naquela noite de junho e vai trabalhar, ou vai descansar para trabalhar no dia seguinte. Nas três semanas que se seguem, carrega o Famous women consigo. No dia 30 de junho — de novo uma quinta-feira; João, pelo jeito, gostava de sair nesse dia — , quarenta minutos depois do fechamento das agências bancárias, entra em um caixa eletrônico do Bradesco, perto do Parque da Aclimação, e faz um depósito de R$ 1.600,00 — mais de R$ 5 mil em valores de hoje.
Vai ver era um cheque recebido pelo trabalho ao qual se dedicara naquele mês, e do qual espairecera três semanas antes com uma ida ao cinema, um café e quatro livros. Quem sabe, depois desse depósito, ele não estaria indo novamente ao cinema, a uma livraria, a um café?
João pega o comprovante de depósito da máquina, provavelmente ignora as mensagens de “Obrigado” e “Tenha uma boa tarde” impressas no papel. Guarda o tíquete entre a última folha de guarda e a contracapa do Famous women, pra conferir depois se o cheque efetivamente caiu.
Esse registro da sua atividade bancária, que as instituições alertam durar pouco se forem expostas à luz, conserva-se até hoje entre as páginas do volume que agora é meu, e ali vai permanecer, junto ao cupom fiscal, como testemunho da história de um livro e de um homem.
Busquei pelo nome completo do João no Google e nas redes sociais. Encontrei aquele registro de CNPJ e menções em processos judiciais coletivos. Mais nada, exceto por uma ocorrência em uma lista do TRE de São Paulo com os títulos de eleitor cancelados por falecimento. O título com o nome de João teria sido “baixado” em abril de 2020. Seria uma das primeiras mortes por covid-19 no Brasil?
João, de onde você estiver, saiba que admiro seu gosto por livros e que tratarei muito bem deste que chegou até mim, com o mesmo cuidado que você demonstra ter tido por ele. Espero que sua vida tenha sido rica de bons momentos, e que os volumes da sua biblioteca encontrem outras boas prateleiras, como certamente o foram as suas.
O segundo livro que compraste naquele dia, que tinha por subtítulo “a permanência dos livros em um mundo impermanente”, acabou sendo profético. Não apenas os livros, mas também você permanece, por meio deles, apesar do fugidio da história.