Carta aberta às e aos colegas da graduação

Adriana Meis
6 min readNov 25, 2019

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As ciências físico-naturais (1917), obra do pintor galego-português José Maria Veloso Salgado (1864–1945). Fonte: WikiMedia Commons.

Relutei em escrever sobre este assunto e depois relutei em escrever publicamente; apesar de estar uma aluna da graduação, minha experiência, nestas alturas da vida, é distinta de quem é jovem e de quem está vivendo a primeira graduação.

Se relutei, por que escrevi?

Porque acho que tenho algo a dizer, justamente por estar na condição de aluna (de Letras) e de professora (da área de Comunicação). E decidi fazer isso publicamente porque, talvez, outras pessoas e outros cursos estejam lidando com a mesma situação.

O assunto diz respeito à demanda pela divulgação das notas em edital não mais pelo nome das e dos estudantes, e sim pelo seu código de matrícula (na UFPR, o GRR). O pedido pela divulgação com o GRR intende evitar o possível constrangimento pela exposição de uma nota baixa. Como o nosso GRR é de conhecimento individual ou, no máximo, restrito, as pessoas em geral não individualizam qual pessoa tirou as notas mais baixas — e nem as mais altas.

Entendo os motivos dessa demanda e penso que são justos. Mas, no fim das contas, não acho que a divulgação das notas pelo GRR seja um bom negócio para as e os estudantes.

Antes de explicar o porquê de não ser um bom negócio, é importante falar das justas motivações desta demanda.

A gente vive, especialmente agora, numa sociedade "uberizada" ou "tripadvisorizada": damos e recebemos "notas" o tempo todo, e ganhamos ou perdemos oportunidades por causa dessas notas.

A universidade sempre foi assim: notas altas dão acesso a bolsas, vagas em projetos científicos e de extensão, oportunidade no exterior. Antes, isso não dizia tanto a respeito de quem somos, e hoje parece que sim.

Nos sentimos fracassados pelas notas baixas quando tantos tiram notas altas ou melhores. E acho que isso é especialmente forte num curso como o de Letras: são tantas pessoas inteligentes, até mesmo geniais, entre docentes e estudantes, que parecemos uns impostores quando não conseguimos chegar perto das notas, dos prêmios, das conquistas deste grupo.

E o pior: em vez de haver uma camaradagem entre os estudantes — afinal, não estamos no mesmo barco? — há competição, isolamento, hostilidade. Parece que a nota vira um rótulo que diz o nosso valor essencial, e que condiciona não apenas oportunidades de estudo e trabalho, mas também de afeto e sociabilidade. Sendo assim, é fácil entender que uma nota baixa ao lado do nosso nome, no edital que é visível para todos, possa causar constrangimento e sofrimento emocional.

Eu queria muito dizer que as pessoas não precisam se sentir assim.

As notas na universidade não vão desaparecer, ao menos por enquanto: isso é fato. O sistema se estrutura nesta base e, como disse antes, muitas conquistas dependem desse critério. Se, para o momento, não se pode mudar a estrutura, é preciso pensar em como lidar com ela e diminuir os efeitos prejudiciais dela sobre nós.

Comecemos pensando nas próprias notas: sejam elas boas ou ruins, devem ter sua importância relativizada. Pelo seguinte:

  1. a nota é uma posição em uma determinada escala de avaliação. Toda avaliação tem seus pressupostos e seus critérios objetivos, e alguns "subjetivos". Boas avaliações procuram diminuir a influência destes últimos. Portanto, a nota não diz sobre quem você é; diz apenas sobre qual posição, naquele momento, naquela escala específica, a sua atividade (e não você) está ocupando;
  2. assim como a sua experiência e vivência pregressas têm um impacto no seu desempenho geral na universidade, as suas condições no dia de uma avaliação também podem afetar seu desempenho: estava com fome? Com dor? Com problemas em casa? Sem dormir? Ou seja, de novo: a avaliação também tem um componente circunstancial, que pode interferir na nota. E isso não diz sobre quem você é;
  3. relativizar a nota não significa tirar o mérito do estudo, das escolhas de vida, da dedicação. Significa separar o que você faz do que você é. Por isso, a sua autoimagem não deveria depender tanto da nota, mesmo que o teu entorno e o teu contexto te pressionem a depender desta classificação;
  4. e se a nota depende do que você faz, talvez você consiga fazer as coisas de um modo diferente, e melhorar essa nota. Veja que estamos focando no fazer, e não no ser.

Na semiótica, trabalhamos com um conceito chamado contrato. Fazemos escolhas e tomamos decisões a partir do aceite ou da recusa a contratos que nos são propostos (propostos pela vida, pela família, pela sociedade, pela necessidade, por nós mesmos).

Deixar-se constranger pela visibilidade de uma nota baixa é aceitar um contrato que diz que somos menos com aquela nota. O inverso — achar que somos melhores do que outros por uma nota alta — também é aceitar esse contrato.Você acha justo esse contrato?

Como tentei expor nos itens acima, isso não é verdade. Não somos pessoas melhores ou piores por causa da nota que tiramos. Portanto — e sei que é difícil reprogramar nossas emoções neste sentido — , você não deveria se importar com um edital em que apareça seu nome. Porque você é mais, muito mais do que aquela nota. E outra coisa: aceitar e legitimar esse contrato contribui para uma praga da nossa área, que é a exacerbação da vaidade acadêmica.

A questão do contrato é o primeiro motivo que, na minha opinião, faz a demanda pela nota com GRR não ser um bom negócio. Mas há um segundo, de ordem prática e com importantes consequências em nossas vidas acadêmicas.

A nota publicizada em edital e com o nome nos permite detectar discrepâncias, erros ou até má-fé. Às vezes, por engano, um professor dá notas diferentes para alunos que fizeram a mesma atividade; para percebermos isso, é necessário que saibamos quem-é-quem. E o GRR impede, ou dificulta, essa identificação.

Ou, então, vemos que um colega que falta, que não lê os textos, não contribui para o bom andamento da aula, tira notas excelentes, e outros, que participam e interagem, tiram notas piores. É o edital publicizado, com o nome, que nos permite observar esse desvio e, eventualmente, solicitar esclarecimentos.

Há também uma situação mais grave, que infelizmente ainda sobrevive na universidade, que é o preconceito. Um edital com nomes pode mostrar se algum professor dá notas, por exemplo, discriminando os estudantes por gênero.

Todos esses exemplos que eu mencionei são hipotéticos e não querem dizer que os professores efetivamente ajam assim. Mas eu já cometi enganos como o do primeiro tipo: notas diferentes para alunos da mesma equipe, por puro erro de "conta". Vendo isso no edital, o aluno prejudicado me procurou e a nota foi corrigida. "Ah, mas alunos da mesma equipe sabem o GRR um do outro". Será? Às vezes não. E às vezes a atividade é com alguém que não é seu colega próximo, do qual você sabe o nome, mas não o número de matrícula.

O que eu quero dizer é que, caso uma destas situações aconteça, o edital com o GRR vai dificultar a percepção e a correção dos equívocos (ou de uma eventual má-fé). Por isso ele não é um bom negócio para você, individualmente, e nem para sua turma e para seu curso, de forma geral.

Há ainda um terceiro motivo: se tudo correr bem, vocês vão participar de muitas seleções durante a vida, em instituições públicas e privadas. Pelo mesmo princípio de transparência que está na base da divulgação das notas em edital, o nome de vocês estará lá nos resultados do concurso, ao lado de seu aproveitamento em provas didáticas, de títulos e escritas. E, nestes casos, a publicização será ainda maior.

Caso sua atuação seja em empresas, é comum também que se façam avaliações em grupo, em que as pessoas criticam umas às outras publicamente— eventualmente de uma forma muito menos justa e gentil do que aquela da universidade.

Não tiro a razão de quem vê na exposição do nome junto à nota uma sensação de constrangimento. Mas é um "constrangimento" que, infelizmente, é frequente no decorrer da vida. Será que lidar com ele — e, quem sabe, superá-lo — durante a universidade não nos prepara melhor para as frustrações, as injustiças e os sofrimentos mais duros que virão após a formatura?

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