Como agradar uma mulher usando a língua

Adriana Meis
8 min readFeb 19, 2020

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Homem segurando um sorvete de casquinha e olhando para frente.
Foto de @Kireyonok_Yuliya. Fonte: Freepik.

A gente pode fazer coisas muito interessantes com a língua. Ao contrário do que se pensa, a língua não é presa nem estática. Ela é dinâmica e está sempre a serviço de quem a usa. Se o seu objetivo é agradar uma mulher usando a língua, vou dar umas dicas de como ter sucesso nisso.

Existem muitos tipos de agrado que uma mulher aprecia. Um dos mais valorizados hoje é reconhecer a atuação e a participação da mulher na produção científica. As mulheres escrevem metade dos artigos acadêmicos no Brasil; no entanto, são menos citadas, ocupam menos cargos no estrato hierárquico mais alto das instituições e ainda sofrem preconceito e boicotes na academia.

Então, apesar de haver muitas mulheres fazendo ciência e produzindo conhecimento, a percepção não acompanha a realidade. Como as mulheres foram, durante muito tempo, alijadas do fazer científico ou dos créditos dele, há um efeito de sentido de que a ciência é algo especialmente masculino. Isso se manifesta quando, por exemplo, pessoas citam autoras mulheres mas, sem se dar conta, usam artigos, pronomes e outras concordâncias no masculino.

Como a língua escrita é a linguagem primordial da produção acadêmica, mostrar a presença do feminino por meio da língua é uma forma de aumentar o reconhecimento das mulheres cientistas e de estreitar a relação entre a ciência e o feminino.

Feminino, aqui, não como algo exclusivo ou inerente às mulheres, mas como um conjunto de ideias, valores e práticas que é injustamente depreciado ou julgado pior, esteja ele presente em homens ou em mulheres, ou mesmo em coisas que não têm sexo ou gênero.

Então, dar visibilidade e reconhecer a presença do feminino é uma forma de ajudar a adequar essa percepção. E dá para fazer isso com a língua, como mostram as sugestões a seguir. Elas são direcionadas à escrita de trabalhos acadêmicos, mas podem ser adaptadas para outros gêneros textuais.

1) Grafe, ao menos uma vez, o nome completo da autoria referenciada

Quando oriento ou avalio um trabalho, recomendo sempre que as pessoas grafem o nome completo das autorias ao fazer uma citação, ao menos na primeira menção a esse nome. Então, se for citar Judith Butler, por exemplo, em vez de grafar apenas Butler (como as normas permitem), escreva o nome e o sobrenome.

Por que isso? Porque, normalmente, é no primeiro nome que se manifestam o gênero e as marcas de etnia, nacionalidade, língua materna.

Em um trabalho que cita o primeiro nome das autorias é possível perceber como se distribui a presença de referências de homens ou mulheres. Isso dá visibilidade às mulheres — algo que não acontece se você cita apenas o sobrenome — e também permite observar se há mais autoras ou autores citados.

A revista científica Estudos Feministas, por exemplo, uma das mais prestigiadas do Brasil, tem como diretriz que, na primeira ocorrência, a própria referência da citação apresente o prenome da autoria. Pelas regras deles, a fonte de uma citação a este texto que você está lendo fica assim: (Adriana BAGGIO, 2020).

Outra coisa: respeite as escolhas pronominais de pessoas que informam sobre como querem ser chamadas. Pabllo Vittar, por exemplo, apesar de ter um primeiro nome que identificamos como masculino, usa o pronome no feminino. Então, se for mencioná-la — como já precisei fazer em um artigo –, use “ela”, “a cantora” etc.

2) Coloque o nome completo das autorias nas referências bibliográficas

A recomendação do nome vale também para a elaboração da lista de referências. Segundo a ABNT, é opcional grafar por extenso ou apenas com iniciais os nomes e sobrenomes intermediários. No entanto, ao grafar os nomes por extenso — e não apenas o sobrenome –, você permite que se manifeste a presença (ou não) do feminino.

Diante do senso comum da separação entre mulheres e ciência, pode ser surpreendente ver uma lista de referências com grande presença de autoras. Isso colabora, em um nível simbólico, para a representatividade das mulheres e para o incentivo de gerações mais novas.

Há também um outro motivo: plataformas que recolhem e contabilizam citações de trabalhos científicos identificarão melhor esses nomes, dando a eles o reconhecimento quantitativo que, para o bem ou para o mal, orienta a maior parte das oportunidades de emprego, de financiamento e de reconhecimento na academia. E ter mais acesso a esses benefícios é algo fundamental para as mulheres pesquisadoras.

Nas referências, então, este texto ficaria assim: BAGGIO, Adriana Tulio. Como agradar uma mulher com a língua. Adriana Meis, Curitiba, 19 fev. 2020. Disponível em: https://medium.com/@adrianabaggio/como-agradar-uma-mulher-usando-a-l%C3%ADngua-d884bac77fad?source=friends_link&sk=e34e8bc38abce2a9ea222e41c95477b1. Acesso em: 19 fev. 2020.

3) Dê crédito às tradutoras (e tradutores)

Quando referenciar um livro traduzido, inclua nas referências o nome da pessoa que fez a tradução. Isso beneficia tradutores e tradutoras, mas especialmente as mulheres.

Como explicou a tradutora Lia Wyler (2003), falecida em 2018, as mulheres tiveram um papel fundamental na consolidação da profissão e da formação em tradução no Brasil e, ao menos no início do século XXI, eram maioria nessa área.

Traduzir foi uma atividade que permitiu a muitas mulheres de classe média o acesso ao mercado de trabalho, na medida em que atendia à necessidade, ao desejo ou à imposição de ser conciliada com o trabalho doméstico ou com o papel social delas exigido.

Virgínia, a protagonista de Ciranda de pedra, de Lygia Fagundes Telles, história que se passa no início dos anos 1950, é formada em línguas e trabalha justamente como tradutora.

Referenciar a tradução é, portanto, dar crédito a este trabalho e visibilidade à participação das mulheres na produção do conhecimento. É importante lembrar que, numa tradução de texto científico, não basta apenas o conhecimento da língua do original, mas também da teoria ali apresentada. Não deixa de ser, então, um trabalho de ciência.

Um exemplo de referência que inclui o crédito à tradução: CIETTA, Enrico. A economia da moda: porque hoje um bom modelo de negócios vale mais do que uma boa coleção. Tradução Adriana Tulio Baggio. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017.

4) Escreva em primeira pessoa

Periódicos, programas de pós-graduação, orientadoras e orientadores têm opiniões distintas quanto à embreagem ou debreagem do enunciador no enunciado do texto científico. Ou seja: se a escrita de um artigo ou uma tese pode/deve ser em primeira pessoa do singular, terceira pessoa do singular ou primeira pessoa do plural.

O uso da terceira pessoa do singular é comumente visto como mais objetivo, mais imparcial, mais distanciado — valores associados ao fazer científico e que procuram mascarar a presença, naquelas ideias, de uma autoria explícita e de uma visão de mundo subjetiva.

Esse uso se manifesta em duas formas:

  • quando a autoria relata a pesquisa colocando o próprio trabalho como sujeito da ação:

Este texto pretende mostrar como a língua pode contribuir para melhorar a visibilidade e o reconhecimento das mulheres na ciência”;

  • quando a autoria convoca um sujeito indeterminado:

Pretende-se mostrar como a língua pode contribuir para melhorar a visibilidade e o reconhecimento das mulheres na ciência”.

O uso da primeira pessoa do plural já situa a autoria das ideias, mas ela é partilhada com outras pessoas, explicitadas ou não. Este uso pode ser escolhido para sugerir modéstia, e então é chamado de plural majestático; ou, então, o uso busca expressar que aquele trabalho é coletivo. Às vezes é mesmo, como no caso de um artigo com mais de uma autoria; outras vezes, o “nós” pretende considerar, por exemplo, a orientadora ou o orientador na ideia de autoria.

Se eu quisesse produzir estes efeitos de sentido, escreveria assim:

Pretendemos mostrar como a língua pode contribuir para melhorar a visibilidade e o reconhecimento das mulheres na ciência”.

Por fim, o mais polêmico dos usos talvez seja a primeira pessoa do singular. Observe quais autores e autoras usam, e em quais áreas do conhecimento desenvolvem seus trabalhos. Você verá que existe bastante diferença.

O uso do “eu” pode ser considerado assertivo e arrogante, e certamente a autoria puxa toda a responsabilidade da exposição para si. Por outro lado, no caso de autoras, é também uma forma de as mulheres mostrarem que ocupam aquele espaço, que ideias brilhantes estão vindo de mulheres, e de manifestar a presença do feminino.

Minha recomendação é que, se você tiver segurança e isso não prejudicar a avaliação do seu trabalho, escreva em primeira pessoa:

Eu pretendo mostrar como a língua pode contribuir para melhorar a visibilidade e o reconhecimento das mulheres na ciência”.

5) Use uma linguagem inclusiva

Não vou recomendar aqui o uso de formas de desinência que procuram apagar a expressão de gênero das palavras, pois num trabalho longo raramente se consegue chegar a um bom resultado, coerente à proposta inclusiva e ainda claro para quem vai ler e avaliar. No entanto, é importante estarmos atentas a esses usos e às soluções que têm sido propostas.

Você pode adotar uma postura inclusiva de linguagem mesmo se atendo às formas gramaticais da língua. Por exemplo:

  • preferindo palavras femininas do que masculinas quando houver essa opção: pessoas em vez de indivíduos, autoria em vez de autores;
  • palavras sem variação de gênero, e sem terminação em “o” (que é a marca do masculino para os falantes do português): estudantes em vez de alunos; docentes em vez de professores, crianças em vez de filhos.

A já citada revista Estudos Feministas, por sua vez, escolhe usar como termo genérico o feminino. É muito bacana a forma como apresentam essa proposta:

O comitê editorial da Revista Estudos Feministas decidiu utilizar o feminino como padrão para os textos de normas e políticas editoriais. Essa decisão levou em conta a acessibilidade dos textos para pessoas com deficiência visual e como uma ação afirmativa para valorizar a escrita das mulheres, que são a maioria das colaboradoras da REF. Esperamos que todas, todos e todes sintam-se incluídas nesta linguagem.

Por fim, outras excelentes orientações para tornar a linguagem menos restrita ao masculino podem ser consultadas neste Manual para o uso não sexista da linguagem.

Estas são apenas algumas sugestões para quem deseja agradar mulheres que reivindicam o aumento da sua visibilidade e do reconhecimento pelos trabalhos que realizam. É um aumento que busca apenas a correspondência entre o plano simbólico e o plano real da atuação e presença das mulheres e do feminino no mundo.

A língua é dinâmica e pode ser usada para desconstruir formas automatizadas de falar sobre as coisas. Não se trata de apagar ou menosprezar o masculino, e sim de garantir às mulheres o espaço e os direitos que lhes pertencem.

Se você tiver outras dicas de linguagem que valoriza as mulheres na ciência, partilhe nos comentários.

Referências:

WYLER, Lia. Línguas, poetas e bacharéis: uma crônica da tradução no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

Como citar este texto (segundo a ABNT):

BAGGIO, Adriana Tulio. Como agradar uma mulher com a língua. Adriana Meis, Curitiba, 19 fev. 2020. Disponível em: https://medium.com/@adrianabaggio/como-agradar-uma-mulher-usando-a-l%C3%ADngua-d884bac77fad?source=friends_link&sk=e34e8bc38abce2a9ea222e41c95477b1. Acesso em: 20 fev. 2020.

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