Conclave: uma alegoria futebolística, política e ideológica
No dia 13 de março de 2013, quando Francisco foi eleito papa, eu estava há um mês em Bolonha para o doutorado-sanduíche. Acompanhei a cobertura do conclave com minhas colegas de apartamento. A imprensa italiana citava até mesmo um brasileiro como candidato: dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo. Uma charge do Corriere della Sera retratava o certame como uma partida de futebol “a portas fechadas”, com o nosso cardeal driblando, fazendo finta e conduzindo a bola até um gol formado por dois castiçais. O tipo de jogo escolhido para a alegoria certamente teve a ver com a nacionalidade do protagonista. Nós, latino-americanos, somos mais associados às habilidades corporais e intuitivas do futebol do que às racionais e estratégicas daquele jogo, o xadrez, que tem entre suas peças um bispo. No fim, com a eleição de um argentino, a escolha da charge foi até profética.
O xadrez é a primeira chave interpretativa sugerida ao espectador do filme Conclave (Edward Berger, Reino Unido/Estados Unidos, 2024) para entendimento das manobras relacionadas à eleição do novo pontífice. Logo no início, ficamos sabendo que o cardeal Aldo Bellini (Stanley Tucci) jogava partidas de xadrez todas as noites com o papa, de quem nunca ganhava. No decorrer da história, veremos que o papa deixou muitas jogadas armadas para serem executadas após sua morte, e elas vão determinando uma partida da qual ele não mais participa.
As belíssimas tomadas dos cardeais em conjunto, reunidos em um único ou em pequenos grupos, parados ou em movimento, podem ser lidas como cenas dessa partida. Os ambientes do Vaticano são o tabuleiro, os candidatos preferenciais são as peças mais importantes, o restante são peões. Mas a mim, tais imagens evocaram aquele outro esporte menos nobre, mais popular e visceral. Quando vista do alto, a movimentação dos cardeais parece uma partida de futebol acompanhada em câmera lenta. Quando os cardeais estão parados e perfilados, no refeitório ou na sala de votação, parece uma partida de pebolim. Mesmo Thomas Lawrence (Ralph Fiennes), o decano dos cardeais que conduz o processo e afirma não ser candidato, é menos um juiz e mais um capitão de time.
Se o conclave é uma partida — de xadrez, de futebol, de pebolim —, o tabuleiro ou campo não é apenas o Vaticano, e sim o mapa-múndi. Alguém observa que os cardeais se agrupam por afinidades nacionais, especialmente os idiomas. É outra chave de leitura para o espectador, porque a distribuição dos concorrentes no espectro ideológico e dos pecados é feita por critérios de hemisfério, raça, etnia, língua. Nesse sentido, é como se a eleição do papa fosse uma alegoria para uma certa visão (problemática) das dinâmicas político-ideológicas que temos acompanhado em eleições de governantes ou nos discursos midiáticos na nossa e em outras nações.
Há três posições: a liberal, representada pelos cardeais progressistas ou, pelo menos, não reacionários. Ele é formado pelo britânico Lawrence, pelo estadunidense Bellini e pelo canadense — de nome inglês — Joseph Tremblay (John Lithgow). Em seguida, a racial, representada pelo cardeal nigeriano Joshua Adeyemi (Lucian Msamati), que é popular, mas moralmente conservador. Por fim, a reacionária, na figura do candidato italiano, Goffredo Tedesco (Sergio Castellitto), racista e de extrema-direita.
Os grupos de cardeais se reúnem para combinar estratégias e defender suas posições. Entre os progressistas, o maior receio é a eleição de Tedesco, o que representaria um retrocesso na abertura realizada pela Igreja nas últimas décadas, e que também fora conduzida pelo papa recém-falecido. Bellini é o favorito desse grupo, mas não está disposto a modalizar seus discursos para facilitar sua eleição. Se eu fosse enquadrar o perfil desse personagem em um dos estereótipos político-ideológicos operantes em uma certa discursividade (que não é a minha), eu diria que ele representa os “identitários” ou os woke. Apesar do favoritismo inicial, Bellini não recebe a maior quantidade de votos nem na primeira rodada do escrutínio, e esse número vai caindo a cada consulta.
Quem começa recebendo mais votos é Adeyemi. Apesar da postura persecutória em relação à homossexualidade, ele é um homem negro e de ligações populares, o que o torna aceitável em uma política de renovação da Igreja. Mas sua candidatura se inviabiliza quando surge uma confusão entre ele e uma das freiras que estão trabalhando como cozinheiras para o conclave — depois falarei da presença dessas mulheres. Três décadas antes, ela, então com apenas 19 anos, tivera um filho dele e entregara a criança para adoção. Ao ser desmascarado, Adeyemi diz “nós éramos crianças”. Lawrence prontamente responde: “Ela era uma criança; você, um padre de 30 anos”.
Diante da insustentabilidade de Bellini e da inviabilidade de Adeyemi, os liberais se veem obrigados a escalar o moderado Trembley. Lawrence o faz a contragosto, Bellini o defende na linha “dos males, o menor”, mesmo quando descobrem que o canadense havia sido destituído pelo papa por corrupção (ele subornara outros cardeais já em vista da eleição que se aproximava, constatando a piora do estado de saúde do pontífice).
Por fim, a postura do caricato Tedesco é a menos complexa e mais estereotipada de todas. Ele fuma, fala alto, é abertamente racista. Sua nacionalidade italiana é explícita e ele defende uma Igreja italiana. Como eu disse antes, a questão da língua é uma chave interpretativa importante nesse filme. Pois bem: o sobrenome desse cardeal é a palavra em italiano para “alemão”. Juntando a personalidade ao nome, temos uma alusão à aliança fascista-nazista estabelecida entre Mussolini e Hitler na Segunda Guerra Mundial.
Passemos então à relação entre nacionalidade/etnia/língua e os pecados dos personagens.
Bellini é um progressista (especialmente no campo moral) preguiçoso ou arrogante, um poser burguês sem vontade de atuar politicamente para evitar o grande mal que ele mesmo identifica em Tedesco. Lawrence não entende a complacência do amigo até intuir, e confirmar, que ele também fora subornado com um cargo na gestão de Trembley.
Trembley é o simoníaco, o corrupto que foi armando sua eleição antes mesmo da morte do papa. Ele é também semeador da discórdia, pois o encontro entre a freira e o cardeal Adeyemi foi armado por ele.
Lawrence recusou constantemente ser candidato; por fim, ao não restar mais alternativas (entre o grupo deles, bem entendido), capitula a um desejo que afirmava não ter e ao reconhecer que, também ele — como já intuíra Bellini — escolhera intimamente um nome de papa (João, o amigo de Jesus).
No grupo dos liberais anglófonos temos então a arrogância, a falsidade, a hipocrisia, a corrupção, que são pecados de homens brancos civilizados. Para o nigeriano Adeyemi, o filme reservou um pecado sexual, que vem à tona não para fins de moralização da Igreja, e sim por oportunismo. É muito significativa essa escolha, e não consigo deixar de pensar em situações da realidade brasileira nas quais, se o “quê” é inquestionável, o “quando” é intrigante. De resto, é a estereotipada sexualização das pessoas negras, que no filme recai sobre o cardeal e a freira.
Todos esses personagens têm pecados escondidos que são revelados no decorrer do conclave; em certas conjunturas, esses pecados poderiam ser minimizados em nome de um bem maior, ou para evitar um mal maior, até porque são pessoas que, publicamente, defendem ideais nobres e estão todas tentando evitar o grande mal: a eleição de um papa reacionário. Já o reacionário Tedesco é o único “pecador” explícito, o único que não esconde o que há de mau em si e que não esconde suas posturas reprováveis.
Quantas vezes não temos ouvido, a respeito de líderes de extrema-direita, que são autênticos, que dizem o que pensam? Não é exatamente com isso que nós, progressistas, temos nos debatido ultimamente? Com a oposição entre os paladinos da justiça, desmascarados como hipócritas quando seus pecados vêm à tona, e os que são assumidamente escrotos?
Como muitos pensadores de esquerda acreditam, entre o liberalismo particularista (melhor do que o injusto “identitário”) que vive caindo na própria armadilha do cancelamento e o reacionarismo cuja violência é vista como autenticidade, a saída é a consciência de classe. E, no filme, classe é mulher.
Nos preparativos para o conclave chega um grupo de freiras, lideradas pela governanta Irmã Agnes (Isabella Rossellini) — nome que significa pureza, castidade; em italiano, cordeiro é agnello, "cordeiro de Deus". Suas roupas simples contrastam aos paramentos dos cardeais; elas entram e saem silenciosamente dos ambientes, modestas e de cabeça baixa. As cenas mostram seu trabalho de arrumação, limpeza, cozinha. Essa divisão do trabalho durante o conclave reproduz explicitamente a divisão sexual entre trabalho de cuidado e de produção, operacional e intelectual, subalterno e protagonista.
Quem também chega humilde ao conclave, e de última hora, é um cardeal que não aparecia na lista de Lawrence. Ele apresenta um documento que comprova o cargo de arcebispo em Cabul, conferido em segredo pelo papa anterior. Seu nome é Vincent Benítez (Carlos Diehz), ele é mexicano e, antes do Afeganistão, esteve no Congo e no Iraque — só bucha. Seus modos são simples e sua tez indígena é parda. Seu tom de voz é suave e sua figura é quase andrógina. Mais uma vez, a questão da língua: Vincent, vencedor; Benítez, abençoado. Quem prestou atenção a essa cena já adivinhou o fim do filme.
Benítez aparece justamente na primeira refeição do conclave, quando todos os cardeais estão reunidos no refeitório, sendo servidos pelas religiosas. Ele se apresenta e faz uma oração na qual agradece o trabalho das irmãs — é o primeiro a reconhecer a presença delas — e fala das pessoas que passam sede e fome, que não têm onde morar, que padecem sem tratamento para suas doenças. Mais tarde, também saberemos que, no Congo, ele construiu um hospital para mulheres vítimas de violência sexual.
No decorrer do processo, não bastassem os escândalos sexual e de corrupção, explode uma bomba do lado de fora do Vaticano, pessoas morrem, o próprio edifício onde estão os cardeais é parcialmente destruído. Aproveitando a crise, Tedesco reivindica um retorno urgente à tradição e declara guerra ao islamismo. Benítez contrapõe com um discurso que fala de amor, de união, de que a Igreja tem de atuar para fora, não para dentro, no presente, e não no passado. Suas palavras embaraçam os demais, pois é a primeira vez que alguém se pronuncia sem ser em defesa do poder.
Até então, as rodadas de votação não tinham conseguido chegar aos 72 votos a um mesmo nome — o necessário para eleger o papa. O novato Benítez teve um voto na primeira rodada e foi angariando outros nas seguintes, mas sempre em quantidades ínfimas. Após esse discurso, o azarão ultrapassa os outros e conquista a maioria, tornando-se então o novo pontífice.
Mas o cardeal mexicano também tem um segredo: na verdade, ele é uma pessoa intersexo, uma pessoa identificada externamente como homem, mas que abriga internamente um útero e ovários — descobertos após sua ordenação como padre. O papa providenciou uma cirurgia, mas ele preferiu não fazê-la. Como diz ao ser confrontado por Lawrence, seu lugar é o da incerteza — ou da fronteira, da mestiçagem, se formos pensar na intelectual me-chicana Gloria Anzaldúa.
O nome de papa que Benítez escolhe é Inocêncio — aquele que não é nocivo. Sua identidade é o maior tabu da Igreja — mulheres não podem ser ordenadas — , mas este, que é um pecado tão grande para a instituição, não faz mal nenhum na prática, não é nocivo aos fiéis.
Se Conclave é uma alegoria para as disputas geo-político-ideológicas, temos em Benítez (um teólogo da libertação?) os valores que talvez devamos afirmar na luta ao reacionarismo, ao neoliberalismo, ao capitalismo: nem o progressismo liberal e nem o populismo patriarcal, mas sim uma articulação entre classe, racialidade e gênero.
Se considerarmos que Inocêncio é o terceiro papa latino-americano que aparece neste texto, eu reforço a ideia do futebol. O papa morto de Conclave pode ter pensado em uma partida de xadrez, mas quando seu peão entra em jogo, ele transforma o tabuleiro em gramado. Passa do banco para uma posição de retaguarda, da linha de fundo para a grande área. Com os cartões vermelhos dados aos craques do time progressista, sobra pra ele a recepção do passe. Quando Tedesco deixa a bola quicando, Benítez aproveita e marca o gol. Nada mais apropriado, nesse caso, dizer que o novo papa foi ovacionado pelos seus pares e pelos fiéis. Ovacionar, ovar, ovos, ovário.