Conforto à mulher fracassada

6 min readNov 3, 2024

Caderno proibido, de Alba de Céspedes, se passa durante seis meses entre os anos 1950 e 1951, em Roma.

A Itália pós-Segunda Guerra, pós-Resistência, a caminho da “dolce vita” dos anos 1960 e já sob os efeitos da Guerra Fria é o pano de fundo para uma história localizada, pontual. Valeria é uma mulher de seus 40 e poucos anos, casada há mais de 20, mãe de dois filhos. Foi de uma família próspera que faliu e, na altura do relato, vive naquela classe que tenta equilibrar valores pequeno-burgueses a uma condição econômica que beira a pobreza. Assume o papel tradicional, cuidando de todos os afazeres domésticos e da criação dos filhos, mas também trabalha fora para sustentar os gastos da casa. Os dois filhos, uma rapaz e uma moça, estão na faculdade.

Valeria um domingo de manhã sai para comprar um maço de cigarros para o marido que gosta (e pode, ela não) de dormir até mais tarde. No tabaccaio — espécie de banquinha — vê uma pilha de cadernos de capa preta. Sente a necessidade imperiosa de ter um deles, mas é proibido comercializá-los aos domingos. Conseguir que o atendente descumpra a lei e lhe venda é o primeiro “pecado” que virá atrelado a tal caderno. Valeria passará a escrever nele as coisas cotidianas, e nesse processo conquistará uma progressiva consciência de sua situação, o que lhe trará ansiedade, angústia, dúvidas, insegurança, frustração.

Uma das angústias é o constante esforço para manter o caderno escondido, e mesmo o ato de escrevê-lo. Vemos, nas primeiras entradas do diário, o papel e o espaço que Valeria (não) ocupa em casa. Ela não tem nem tempo e nem um lugar que seja para si, muito menos o direito de pensar, de ficar sozinha, de ter interesses que não sejam a família.

Difícil não lembrar da Delia de C’è ancora domani (Ainda resta o amanhã, 2024), filme que retrata mais ou menos a mesma época (1946), mais ou menos a mesma configuração familiar, mais ou menos a mesma condição social. O que essas duas histórias têm de diferente apenas destaca o que há de comum na experiência de mulheres daquela época e daquele país, quiçá também dos nossos (época e país).

Michele, marido de Valeria, não é agressor físico como Ivano, marido de Delia. Os filhos de Delia são em três e são mais novos. Mas ela também trabalha fora (além do serviço de casa), faz pequenas trapaças com as despesas domésticas para poder ter algo para si (nem que seja tempo) e vive em um medo constante que descubram o seu segredo.

A partir daqui, vou contar coisas que têm a ver com o final dessas duas narrativas.

Mais do que a adquirir consciência, os fatores externos as levam a não mais poder negar a situação em que vivem e as angústias derivadas disso, pois consciência talvez já tivessem. No caso de Delia é uma convocação para votar — seria a primeira eleição a permitir o voto das mulheres — , no de Valeria o caderno. São duas coisas que hoje nos parecem ínfimas, prosaicas, mas que se configuram como extremamente subversivas para aquelas duas mulheres. Nos dois casos, essa subversão vem acompanhada de outra, mais grave: a traição conjugal e a possibilidade de escapar da gaiola doméstica por meio da fuga com outro homem.

Em nenhum dos casos essas coisas se realizam: nem a traição, nem a fuga. Mas a relação sexual que consumaria a traição acontece, de certa forma, pela mediação de objetos “de consumo”. Delia divide com o antigo amor, de antes do casamento, um chocolate que ganhou de um soldado estadunidense (os EUA ainda “ocupavam” a Itália logos após a liberação). Já Valeria se relaciona com Guido, seu chefe, por meio da escrita no caderno. Interessante que ambos são objetos relativamente proibidos: o chocolate, iguaria rara naquele momento, ganho de outro homem. O caderno que não podia ser vendido no domingo.

No filme, a tessitura da intriga nos faz pensar que o que Delia fará “amanhã” é a fuga com o antigo namorado; ao final veremos que é o voto, que sair de casa nem passa pela sua cabeça. O ato de votar naquela primeira eleição, quase impedido por inúmeros contratempos — ela não consegue ir votar no domingo, mas também haveria votação na segunda, por isso "c'è ancora domani", ainda tem [votação] amanhã — , representa a conquista de algum respeito e dignidade dentro das relações familiares. Delia não quer fugir para ter isso. Valeria quer fugir, mas não consegue.

Lembro de sair do cinema pensando que C’è ancora domani é tanto uma leve admoestação a uma geração que re-discrimina quem não consegue superar as opressões quanto uma acolhida a essas pessoas que quiseram ou tiveram que “ficar” (um reconhecimento da necessidade de “dialogar com os conservadores” para evitar o perigo advindo da extrema-direita?). No estudo de Mariella Muscariello que acompanha Caderno proibido há uma reflexão de Alba de Céspedes em que encontrei melhor formulada a minha sensação sobre C’è ancora domani:

“Porque para fazer certas coisas precisa-se de muita coragem, para dizer vou embora de casa, para dizer vou fazer meu trabalho, então ela ficou! Valeria era insegura, como a maior parte das mulheres. Hoje a situação é diferente porque desde meninas elas recebem uma educação diferente. Para mim, ‘Caderno proibido’ é o livro mais pernicioso, sob certos pontos de vista. Mas, para os leitores, é o mais confortador, porque diz pronto, é preciso ficar […]. É o livro que conforta quem se sente fracassado.”

Nos dias de hoje, a decisão tomada por essas mulheres — ficar — talvez nos faça revirar os olhos. Reprovamos sua falta de coragem, a recusa em romper com o papel que lhes foi imposto, a dificuldade de assumir uma nova identidade. Nos escapa, porém, a parte que tiveram de agência: a consciência sobre sua situação e sobre seus limites e a decisão de ficar.

Acompanhamos pelo diário as idas e vindas da tomada de consciência de Valeria. Ela não ignora o que lhe cerca e nem sua falta de coragem. Se criticamos sua aceitação como passividade, não enxergamos o que houve de ativo: o decidir ficar. É uma lógica que opera até hoje e que serve para continuar discriminando ou revitimizando sujeitos oprimidos: quem está do outro lado — do opressor, do não vitimizado — condiciona o respeito à subversão total (que mesmo o próprio crítico nunca conseguiu realizar). Se o oprimido não cumpre os programas de libertação que achamos que deve cumprir, não o aprovamos. Não reconhecemos o direito de decidir por si, de acordo com suas circunstâncias e possibilidades. Não vemos como agência a decisão que difere daquela que projetamos para elas e eles.

Outra semelhança entre Delia e Valeria é a relação com suas respectivas filhas. As moças criticam abertamente a vida que as mães levam e demandam para si novos papéis. As mães, por sua vez, não conseguem fazer ver às filhas que estão se sacrificando (com o trabalho doméstico e o fora de casa) para que elas tenham oportunidades melhores. No caso de Delia, esse conflito se resolverá e a filha se tornará cúmplice da mãe. Para Valeria, Mirella sempre será uma incógnita. Ela escreve no caderno:

[Mirella] não compreende que fui justamente eu a torná-la livre, eu com minha vida dilacerada entre velhas tradições tranquilizadoras e o apelo de novas exigências. Coube a mim, eu sou a ponte da qual ela se beneficiou […]. Agora posso até desabar.” (p. 255)

A inteligência da filha, já inata e depois cultivada pelo estudo, se voltará de modo inclemente contra a mãe. À alusão a deveres, tradição, moral e religião Mirella responderá com questionamentos racionais, argumentos, desmontes da lógica hipócrita e vazia a que Valeria recorre para tentar demover a filha de caminhos que ela mesma talvez quisesse seguir, mas não pode ou não tem coragem. No fim, quando se vê novamente capturada pela cilada doméstica, Valeria libera a filha, reconhecendo-a como sujeito autônomo e capaz de tomar boas decisões por si mesma, segundo outros parâmetros e liberta dos grilhões com os quais a mãe se prende por já não saber ser outra fora deles.

Está aí um livro que eu gostaria de ter lido quando minha mãe ainda era viva.

Caderno proibido [Quaderno proibito]
Alba de Céspedes
Tradução de Joana Angélica d’Avila Melo Posfácio de Mariella Muscariello Companhia das Letras, 2022.

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Adriana Meis
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Written by Adriana Meis

"Fora do texto, não há salvação."

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