De "liberdade de expressão" o inferno está cheio

Adriana Meis
6 min readApr 24, 2019

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Ilustração da designer argentina Maru Ceballos para o Canto XXIII da "Divina Comédia", de Dante Alighieri. Este canto trata da sexta fossa do oitavo círculo do Inferno, onde estão os hipócritas. Suas capas de chumbo com a parte externa dourada fazem com que andem inclinados. A obra integra a exposição "Los círculos del Dante", em cartaz no Museo Mitre, em Buenos Aires, até 10 de maio de 2019. A foto é minha, por isso a má qualidade.

“Quem está em condições de determinar o que pode ou não ser dito, a direção correta da História ou o que é, exatamente, um ‘crime de ódio?”

Este é um trecho do parágrafo final de um texto publicado no Plural, em que seu autor estabelece uma relação entre o caso de Danilo Gentili e o ocaso do comediante estadunidense Lenny Bruce, morto em 1966.

Sandoval Matheus, o autor do texto, lembrara da cinebiografia de Bruce ao ler a notícia de que o Poder Judiciário brasileiro havia “[…] considerado razoável colocar na prisão um sujeito que enfiara um papel dentro das calças”. Em seguida, desenvolve seu texto citando falas de Bruce que ilustrariam sua opinião (de Bruce) sobre a sociedade em que vivia.

Estas opiniões podem ser entendidas como: 1) denúncia da hipocrisia da sociedade norte-americana; 2) ameaça ao moralismo reinante; 3) zombaria; 4) incoerência de alguém que se considerava de “esquerda”.

Por conta dessas opiniões, Bruce teria sido vítima de uma “máquina de moer gente” que acabou por levá-lo frequentemente à prisão e, finalmente, à falência. Para Matheus, além da vida conturbada do comediante, isso — “a perseguição do sistema judicial americano” — acabou tendo um papel importante em sua morte.

Não conheço a história de Lenny Bruce, mas acho razoável a opinião do jornalista. Vimos o mesmo ocorrer aqui no Brasil, há não muito tempo, no caso do suicídio do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina. Mesmo quando não mata pessoas, o sistema judiciário brasileiro tem assassinado reputações com suas perseguições levianas e enviesadas, baseadas em delações obtidas e divulgadas de forma a flertar ou até mesmo se atracar com a ilegalidade. E a imprensa, muitas vezes, pega a carona nisso ou até mesmo toma a dianteira (há um problema geral com nossas instituições).

Entendi, portanto, que a crônica quis dizer o seguinte: um homem (Lenny Bruce) que falava o que pensava, na maior parte das vezes como forma de fazer crítica e humor (e, apenas excepcionalmente, ofendendo ou injuriando), foi perseguido pela justiça e acabou morto. Estamos em risco de ter uma situação como essa aqui, a partir do precedente aberto pela condenação de Danilo Gentili.

No entender da crônica, 1) Gentili foi condenado por ter colocado um papel dentro das calças e 2) esta condenação é injusta porque o sistema judiciário brasileiro não teria condições de determinar: a) o que pode ou não ser dito; b) a direção da História; c) o que é “crime de ódio”.

Bom, vamos lá: se Bruce é colocado como alguém perseguido pela Justiça por desmascarar a hipocrisia, como se situava ele mesmo diante desta hipocrisia?

Uma das “zombarias” do comediante, segundo Matheus, foi a seguinte:

“‘Eu prefiro que o meu filho veja um filme pornográfico do que um filme convencional, como O Rei dos Reis. Porque O Rei dos Reis está cheio de mortes, e eu não quero que meu filho seja influenciado a matar Jesus Cristo quando ele voltar’, zombava. Ou ainda: ‘Não há um único filme pornô em que alguém apanhe ou seja morto. Com sorte vemos alguém sendo amarrado ou levando leves pancadas com um cinto’”.

Já me antecipo dizendo que não tenho nada contra a pornografia em si. Entendo que proibir a pornografia não resolve os eventuais problemas causados pela pornografia. Dentre eles estão, por exemplo, mulheres que morrem precocemente, por causas físicas e/ou psicológicas relacionadas à atuação nestes filmes. Linda Lovelace, do cultuado Garganta profunda (1972), era estuprada e espancada pelo marido (diretor dos filmes) ou por outros atores, antes e/ou durante e/ou depois da gravação das cenas. Digamos que é um pouco mais do que “leves pancadas com um cinto”.

Ainda que não apresente mortes em seus roteiros, a exemplo d'O Rei dos Reis, a pornografia mainstream promove um tipo de sexualidade que, sem o contraponto de uma conversa com a família ou da educação sexual, os jovens que a assistem vão achar que é normal, frustrando-se quando encontram parceiros reais, que exigem reciprocidade e respeito. Mas, considerando o recrudescimento do conservadorismo e do cerceamento do papel da escola, essa conversa não acontece, ou é distorcida.

Nenhum desses problemas é da pornografia — como gênero fílmico — em si, mas especialmente da estrutural desigualdade de gênero da sociedade.

O paradoxo, então, é que Bruce quisesse tacar fogo em apenas alguns problemas sociais, mas não em outros. Sua opinião — ingênua ou cínica, vai saber — sobre a ausência de violência na pornografia ou sobre o fato de não ser má influência para seu filho é bastante reveladora. Jesus como alvo da violência é um problema. A mulher, não.

Vamos concordar que não existe aí muita subversão à ordem vigente.

Todavia, a ingenuidade ou o cinismo em relação à pornografia não justifica a perseguição sofrida por Lenny Bruce. Da mesma forma, é totalmente incorreto que Danilo Gentili seja condenado por tentar envolver o pinto em papier maché.

O problema é que não foi por isso que ele foi condenado — e, portanto, antes de dizer que o episódio é tão somente uma afronta à liberdade de expressão, talvez seja importante contar a história toda.

A decisão se baseia em um conjunto de fatores:

1) Gentili foi condenado por injúria, cuja materialidade está nos tuítes ofensivos e no vídeo.

2) Ele teve amplo direito de defesa.

3) Nesta defesa, ele não conseguiu caracterizar o vídeo como uma peça de humor: disse que o humor se baseia no timing da piada, mas o vídeo foi veiculado UM ANO após o recebimento da notificação.

4) Ele revela que sua atitude foi um contra-ataque à notificação, pois se sentiu “acuado”. Portanto, não se tratou de uma manifestação espontânea, de alívio, e sim premeditada, de vingança.

5) A injúria depende de dolo, de intenção, e a questão do timing, do contra-ataque e da não opção, por exemplo, de brigar na justiça pela manutenção dos tuítes, mostra isso.

6) O aumento da pena (segundo a legislação federal) tem a ver com a função da pessoa injuriada, mas também com o alcance da ofensa. [Aqui entraria outra discussão sobre a pena de prisão em relação à multa, mas também sobre pessoas ricas poderem pagar multas e pobres não, restando a estas, então, a prisão.]

7) O “humorista” mesmo diz que boa parte de seus seguidores é de adolescentes, o que implica mais responsabilidade, portanto, pena mais dura.

8) Foi cínico ao dizer que não entende porque chamar alguém de “puta” seria uma ofensa.

Quanto a este ponto último, o texto de onde eu tirei os itens acima comenta: “Se é verdade que o Judiciário vai ter que decidir cada vez se uma fala é ofensa ou humor, dessa vez ficou claro que a Justiça não achou a menor graça”.

Acho que isso responde um pouco a pergunta inicial, sobre se é direito da Justiça determinar o que pode ou não ser dito.

A Justiça nunca vai fazer uma lista de palavras que não podem ser ditas. A Justiça vai determinar se aquilo que eu ou você dissemos — com base no contexto, na lei e na nossa defesa — é ou não uma ofensa, uma injúria, racismo ou crime de ódio.

As palavras não são boas ou más per se. Tudo depende do seu uso. Macaco não é ofensa quando se designa o animal, mas é racismo quando as pessoas xingam jogadores no campo de futebol.

Posso pensar em muitas situações em que “puta” tem um uso não-ofensivo, ou até mesmo positivo. Uma delas é quando as prostitutas se apropriam do termo para lutar contra o estigma da profissão, para terem direitos, para serem respeitadas como cidadãs, trabalhadoras e mulheres.

Óbvio que ser puta não é um problema. Mas não é assim que pensa Gentili. O “humorista” está muito longe de combater o moralismo ou a hipocrisia, e baseia suas piadas — e suas ofensas — justamente neles. É por isso que ele e todos nós sabemos que não estava elogiando ao filmar (de)puta(da).

A discussão sobre o limite entre liberdade de expressão e ofensa é fundamental, especialmente neste momento de constante ameaça à primeira e de frequente uso da segunda, impunemente, pela maior autoridade do país.

Por outro lado, a incapacidade geral da sociedade em criticar e xingar mulheres sem cair na ofensa de cunho sexual mostra que pouco desse tipo de discurso pode ser considerado como “expressão” ou humor. Na maior parte dos casos, é injúria mesmo, primeiro degrau da escalada de violência contra a mulher que culmina no feminicídio.

Humoristas e demais adultos como Gentili — que, como diz Matheus, estão “na prisão mental da quinta série” — precisam crescer e entender que seus atos e suas falas têm consequências. Quanto mais pudermos tratar disso no âmbito da educação e da comunicação, menos dependeremos do Judiciário para apontar o limite da "liberdade de expressão".

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