Escrever bem não precisa ser um drama [e outros clichês envolvendo redação publicitária e teatro]

Adriana Meis
5 min readMar 28, 2018

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Hoje começa o tradicionalíssimo Festival de Teatro de Curitiba. Para mim, é tradição também observar os anúncios publicados na revista da programação. Como redatora publicitária, fico curiosa para ver como as marcas e as agências resolvem o pepino que é usar de forma inovadora o campo semântico do teatro em seus anúncios. Difícil achar uma metáfora, uma associação que ainda não tenha sido feita. Entre iniciativas bem-sucedidas de originalidade estão lá também, todo ano, aquelas mais óbvias e batidas. Faz parte, e quem trabalha com isso sabe a tragédia (hehe) que é conseguir fazer/aprovar algo bacana com certos clientes.

Então hoje aproveitei a fila do RU para conferir a revista e escolher as peças. Folheio as páginas e minha mão começa a coçar. Primeiro só um formigamento, depois umas pequenas pontadas, até que o prurido se torna insuportável e eu TENHO que pegar a caneta da mochila e começar a riscar. É um tipo de compulsão difícil de curar, fruto desta vida de redatora-professora-revisora. Não quero que nenhum redator/a destas peças fique chateado/a. São observações e/ou sugestões de quem pode olhar tranquilamente de fora, sem passar pelo perrengue que é a criação e a aprovação de um anúncio. A ideia é que essas observações ajudem quem está labuta para melhorar sua escrita.

1. O mundo precisa de paz — e de coerência. Evite a violência semântica

Não é lá uma grande tragédia confundir a máscara "triste" com a ideia de drama, mas se for possível evitar, melhor, né?

O anúncio diz que a internet das empresas não pode ser ruim, por isso elas devem contratar o serviço da companhia XYZ. Muito bem. Para “ilustrar” esse “ruim”, o anúncio usa a palavra “drama” associada às máscaras da comédia e da tragédia. Só que em vez de uma máscara de cada temos duas “tragédias”, para enfatizar o drama que é ter uma internet ruim.

Drama é uma palavra que usamos para qualificar algo que é sofrido, negativo, complicado, exagerado, triste. Neste sentido, a associação feita no anúncio é coerente e, se a coisa ficasse por aí, estaria tudo ok. No entanto, a presença das máscaras convoca outro sentido da palavra, que é o teatral (ou dramatúrgico). Daí já é outra coisa. Drama não é igual a tragédia. Drama seria o próprio teatro, tanto quando é comédia como quando é tragédia.

Há uma “violência semântica” (comparar usando elementos de categorias diferentes ou comparar categoria com um de seus elementos) na construção da alegoria deste anúncio, que poderia ser corrigida com uma pesquisa mais aprofundada sobre estes conceitos. Para consolo dos enunciadores, talvez o senso comum não perceba esta “violência”. Mas ele vai perceber que é uma ideia batida, pois o anúncio abaixo usou a mesma associação.

2. Ideia diferente, mesma incoerência

"Drama" é o caralho! Meu nome é "tragédia"!

Esta marca também diz que outra opção, a não ser ela, é algo ruim, e esse ruim seria o "drama". O anúncio também confunde "drama" com tragédia ao usar as máscaras como ilustração. Enquanto na marca anterior o "vilão" era a internet ruim, representada por duas "tragédias", aqui o "vilão" é outra marca de ferramentas; já o "mocinho" é a anunciante.

Por que esta marca pode se colocar nas máscaras desta forma? Porque seu produto (o capacete) integra-se facilmente à ilustração metafórica, podendo então a "comédia" ser considerada "legal" em oposição à "tragédia". Vale comentar, porém que na configuração do teatro grego estabelecida por Aristóteles, a forma superior e mais nobre de encenação é a tragédia, enquanto a comédia é inferior, de menor qualidade. Se essa marca anunciasse lá por volta de 300 e caquinho a.C., seria melhor colocar o capacete na máscara da direita.

3. Um fornecedor automotivo com problema de acento

Certamente os engenheiros dessa empresa são mais atentos que os redatores/revisores.

A gente chega na faculdade de Letras achando que vai aprender a "escrever certo" e já nos mostram que não existe certo ou errado, é uma questão de variantes. Ok, não é bem assim. É importante conhecer a variante culta e normativa da gramática, porque é ela que devemos utilizar na hora de redigir um anúncio publicitário, por exemplo. O acordo ortográfico bagunçou um pouco as coisas, mas até o Word sabe que "ideia" não tem mais acento, e que "automóveis" nunca perdeu.

4. Momento Policarpa

Reprise.

Nada contra estrangeirismos, mas pra que usar uma palavra mais difícil se tem outra mais fácil em português? Catamarã é tão fofa! Se não me engano, impliquei com esse mesmo anúncio no ano passado também.

5. Alguns verbos custam mais caro do que outros

Será que testaram com "obtenha"?

Nenhum problema aqui, tudo certinho e bonito. Mas… por que não "compre" em vez de "adquira"? Será por que adquirir nem sempre é com dinheiro? Daí a gente compra o ingresso mas nem sente que está gastando, é como se a gente estivesse "adquirindo cultura".

6. Com aliteração

Na prática a gente super usa a forma "comprometer-se com", nem dá pra reclamar. No entanto, quando ela está por escrito surge um estranhamento, e não é pra menos. A gente está comprometida (e ponto final) ou a gente se compromete a alguma coisa, mas não se compromete com. A pista do estranhamento é essa repetição do "com". A mesma coisa com "compartilhar": partilho estas reflexões com vocês, em vez de compartilho estas reflexões com vocês. Mas enfim, vai ver foi proposital e a profusão de "com" visa provocar efeitos estésicos por meio da aliteração. Neste caso, o "local" é totalmente dispensável, pois "comunidade" já sugere essa ideia.

7. Corte as gorduras

Adoro crase.

Questão de gosto: eu colocaria "à" em vez de "para a". Quando dá pra cortar, passa a faca que fica mais elegante.

8. Mais do mesmo

Se os redatores cortassem palavras excessivas como o governo corta verbas da cultura e da educação…

Se a gente divide alguma coisa, é porque essa coisa é uma só, então ela já é a mesma. Corta que fica mais elegante.

9. Porque sim

O show não pode parar por nenhum motivo, mas MUITO MENOS por falta de energia. Melhor que "principalmente", né?

Agora chega de palpitar nos anúncios e bora escolher as peças. :)

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