Mulheres cansadas de ter ambição

Adriana Meis
7 min readJul 8, 2023

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Houve um tempo em que quisemos trocar o par de tênis por sapatos de salto como a Tess McGill de "Uma secretária de futuro" (1988).

Mulheres brancas de classe média ou média-baixa que estão hoje com seus 50 anos provavelmente ouviram, quando crianças ou adolescentes: estude para ter uma profissão e não precisar depender financeiramente de um marido. Ter uma formação que garantisse uma empregabilidade minimamente decente dentro do espectro de trabalhos respeitáveis para essa classe média significava poder pular fora se o casamento azedasse demais ou se o marido resolvesse te largar com a piazada no colo e ir fazer a vida com outra.

Algumas dessas meninas, então, entraram na faculdade. Com a formação superior tendo aparentemente garantido aquele lastro recomendado pelas mães, podia-se agora pensar em ser chefe, dirigente, ter uma carreira, galgar postos dentro das organizações, ao menos até bater a cabeça no teto de vidro. Porém, para algumas das que tinham condições de ser bem-sucedidas, isso deixou de ser uma opção e passou a quase obrigação. Uma motivação que, no princípio, tivera eventualmente uma lógica feminista, passava a atender à lógica neoliberal de sucesso e atuação social disfarçada de empoderamento feminino.

O investimento na carreira não afastou as mulheres do casamento e nem mudou muito o critério para a escolha do parceiro. Se já não era necessário um marido com condições de sustentar sozinho a família, era preciso, porém, que ele estivesse junto ou acima da mulher no ranking de uma vida bem-sucedida. Essa posição no ranking pode-se medir por diversos tipos de capital: o monetário, o social, o intelectual ou o acadêmico.

Já com carreira e marido afins a uma pessoa bem-sucedida, chega a vez dos filhos. Eles precisam ter as competências e habilidades adequadas e estudar nas escolas certas. Se a família é progressista, essa escola será pequena e de orientação pedagógica alternativa. As crianças nunca levarão ultraprocessados na lancheira, a mãe só se vestirá com marcas de design autoral local, as frutas e verduras consumidas pela família serão sempre orgânicas. É uma gestão imensa da casa e do estilo de vida que recai majoritariamente sobre as mulheres, mesmo aquelas que selecionaram maridos progressistas (que o vulgo designa de esquerdomacho).

Há tantos pontos a se marcar na gincana da vida bem-sucedidamente correta que algumas dessas mulheres cansaram, e isso está aparecendo em produtos culturais com diferentes graus de politização do tema. Topei com dois deles nas últimas semanas.

A ambiciosa e perdida Hanna com a desencanada garçonete que acha que a vida é mais do que trabalhar.

Primeiro, o filme sueco O ano em que comecei a vibrar por mim (Netflix, 2023). O vibrar tem um duplo sentido porque é a partir do uso de um vibrador que a personagem, Hanna, começa a refletir sobre o que deu errado em sua vida e passando a fazer escolhas melhores para si.

Mas o que deu errado? No início da história, Hanna tem um cargo de responsabilidade em uma empresa que lida com televisão/cinema e é ótima no que faz; tem também um namorado, que é mesquinho, babaca e egoísta. Eles criam o filho dele e ela quer um bebê, ele diz que ela não tem tempo, sugerindo que deixe o emprego, ela pede demissão no dia em que seria promovida e, nesse mesmo dia, ele dá o fora nela.

Hanna fica perdida sem marido e sem emprego e é com a ajuda de uma garçonete (que tem outra relação com o trabalho: trabalha apenas para se sustentar e seu propósito de vida não está em carreiras ou empregos) que começa a prestar mais atenção em si mesma e em seus desejos, com a ajuda da masturbação. Depois de penar em busca de um lugar para morar, de fazer muita merda e de receber vários nãos de amigas que abandonara, a protagonista coloca o rabo entre as pernas e consegue recuperar o emprego, mas agora como assistente da sua ex-estagiária.

A história termina com a festa de aniversário de 40 anos de Hanna, final feliz que — importante — não inclui namorado ou marido e nem bebê. Nessa festa se reúnem a rede de amizades femininas de que descuidara, os homens de quem se afastou romanticamente porque não faziam bem a ela (mas que continuam seus amigos) e os colegas de trabalho do antigo/novo emprego.

A parte do emprego, que aparece antes da festa, é a mais emblemática: Hanna deixa de ser assistente da estagiária, mas condiciona o retorno a um posto de maior responsabilidade à possibilidade de ser tão medíocre quanto um de seus colegas homem, que sai cedo da firma, faz o mínimo possível, deixa tarefas incompletas e nem por isso é mandado embora. Hanna aprendeu a curtir o tempo fora do trabalho e não quer mais abrir mão disso.

Mercedes, a protagonista da história, mora em uma quitinete menor do que esse quarto.

O ano em que comecei a vibrar por mim estreou em 2023. Em 2021, foi lançado Uma mulher sem ambição, ficção brasileira (o termo romance não aparece na ficha catalográfica) de Sabina Anzuategui. A história é narrada em primeira pessoa por meio do diário de Mercedes, uma ex-roteirista de sucesso que, no presente da narrativa — 2010, quando “o país estava feliz. Ruas cheias de carros, bares cheios de clientes. Aeroportos lotados de pessoas que antes viajavam de ônibus.” (p. 7) — , com 37 anos, dá aula de cinema duas vezes por semana em uma escola de teatro em São Paulo.

Sabemos que Mercedes fora casada com um médico bem-sucedido, que era respeitada em seu trabalho, ganhava bem, morava melhor ainda, viajava para o exterior, era habituée de comer fora em restaurantes caros. Agora, paga ao pai um aluguel simbólico para ocupar a quitinete que ele comprou quando solteiro, conta os centavos para passar o mês e sua diversão nos fins de semana é assistir a filmes gratuitos nos espaços culturais da cidade e tomar cerveja com outros cinéfilos durangos no bar em frente ao Centro Cultural Paraíso.

O diário relata o cotidiano de Mercedes de 30 de abril a 28 de maio daquele ano de prosperidade. Aparentemente, não houve motivo grave nem para pedir o divórcio e nem para sair do emprego. Ela simplesmente cansou. Nesse mês, acompanhamos sua busca por um outro trabalho, não um trabalho diferente, e sim um trabalho adicional, que melhore um pouco sua renda.

Mercedes gosta de dar aulas, e busca vagas nas faculdades particulares que surgiram abundantemente naquele período. Sua formação em cinema não ajuda muito. Pressionada, pede indicação a uma amiga, que a recomenda para um trabalho que ela não quer mais: o de roteirista. Chega a ir na entrevista: é um projeto para um criador muito famoso e admirado por todos, mas o empenho será muito, o dinheiro proporcionalmente pouco, e o reconhecimento menor ainda.

Esse criador, tão admirado pela defesa do meio ambiente e dos animais em extinção, que ensina crianças a ler com seus projetos fofinhos, não dividirá os créditos de criação da série com as roteiristas, a quem caberá uma enorme tarefa, inclusive de criação (sinopses, personagens). O texto não mostra a palavra hipocrisia e nem uma análise sobre a exploração do trabalho alheio em nome de discursos aparentemente progressistas, mas os elementos estão ali para quem quiser pensar sobre eles.

Antes da entrevista (ao sair do telefonema com a amiga que lhe indicou o trabalho), Mercedes reflete:

Desligo e me desmonto teatralmente sobre a cadeira, esmagada pelo esforço de cordialidade. Eu só queria um pouquinho mais de dinheiro. Só um trabalho simples e inofensivo. Uma tarefa curta, um bico, um quebra-galho. Não uma série que vai exigir dedicação de segunda a segunda, das oito da manhã à meia-noite, que vai invadir meus pensamentos no sono, no banho, no vaso sanitário. Que vai me estressar e me induzir a gastar meu pagamento em restaurantes e bebida ou qualquer outra satisfação rápida. […]

Deve ser possível — de alguma maneira misteriosa — viver em harmonia com os ritmos naturais do corpo. Trabalhar em turnos confortáveis, sem gastar as horas livres cultivando relações estratégicas. Mas esse mistério ainda não resolvi. Até agora, a modéstia para mim foi uma ladeira. Não tem planície no meio. (p. 108)

Uma mulher sem ambição trata desse white people problem que é o modo específico pelo qual a lógica capitalista afeta o trabalhador intelectual de classe média que se recusa a assumir os ritmos e valores de áreas como a publicidade, o cinema, a academia: trabalhar demais, ignorar a hipocrisia ou contradição dos oportunismos progressistas, ter como fim a monetização compulsória da própria técnica/habilidade/competência.

Quando Mercedes observa que não há planície, é porque se dá conta de que não conseguirá ganhar o suficiente com seu trabalho intelectual sem que seja necessário vender a alma. Ou ela retorna ao antigo esquema, ou será levada ladeira abaixo, junto àqueles com quem divide os ônibus em São Paulo, mas de quem se distingue pela cor, origem de classe e tempo de escola.

Um outro aspecto da renúncia da exausta mulher branca de classe média diz respeito aos relacionamentos. A personagem está vagamente interessada em um dos companheiros de bar, Heitor, que é funcionário da Fundação Casa, crítico, engajado, politizado, bonitão. Mas, saberemos no fim, também hipócrita. Logo no início da narrativa, depois de uma noitada no boteco Mercedes acaba na cama de um dos amigos de Heitor. Noel é bancário da Caixa, meio gorducho, um “homem sem qualidades” (impossível não lembrar do título do livro de Roberto Musil quando se lê Uma mulher sem ambição; mas não li o de Musil). No decorrer do mês, a protagonista o encontrará mais vezes, ele será atencioso com ela e demonstrará claramente seu interesse.

Num desses encontros, Mercedes diz a Noel que havia prometido não mais se relacionar com homens feios. Mas, no dia 28 de maio, é na casa dele que ela acorda novamente. Contente e tranquila, reconhece ali a versão masculina da “loser” em que ela própria se transformara (segundo quem critica sua falta de ambição), e a quem reivindica valorização e oportunidades melhores de vida.

Para essa mulher, a recusa da lógica capitalista está também na escolha do parceiro; se eles efetivamente ficarem juntos, a união de dois ganhos modestos poderá alçá-los à planície que lhes dará condições de viver a vida com menos estresse e mais verdade e satisfação. Algo tão básico, porém, parece ser hoje uma grande ambição.

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