De cada amor tu herdarás algum cinismo

Adriana Meis
3 min readFeb 12, 2018

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"Alone Together", de Maria Kreyn: a obra aparece na série "The Catch".

No primeiro episódio da série "The Catch" (infelizmente cancelada depois de duas temporadas, que ainda podem ser vistas na Netflix), a personagem vivida pela maravilhosa Mireille Enos ("The Killing") evita o roubo de uma obra de arte de um museu. A obra aparece na série como "ela mesma". Chama-se "Alone Together", da artista russa radicada em Nova York Maria Kreyn.

Na série, a obra é uma espécie de ilustração da situação-chave do enredo. Ao admirá-la, a personagem comenta que a mulher está apaixonada e, justamente por isso, antecipa a dor do término da relação. O homem talvez esteja apaixonado também, mas como não vemos (ele não mostra?) seu rosto, não temos como saber se passam por sua cabeça e por seu coração os mesmos temores de sua parceira.

No site da artista, ela explica a própria obra com uma leitura um pouco estereotipada ("clássica", "antiquada", ela diz) dos papéis masculinos e femininos numa relação erótico-amorosa. A mulher assume uma postura ambivalente: não está nem feliz nem triste; puxa o amante ao mesmo tempo em que o afasta; seus pensamentos alternam entre o enlevo do presente e o medo do futuro. O homem seria psicologicamente "menos complexo" (palavras da artista). Sua entrega representaria o desejo assumido e vivido naquele momento, sem outras preocupações.

A artista diz que sua obra coloca em relevo modernas concepções da ambivalência feminina. Tenho um pouco de receio destes qualificativos adotados de maneira peremptória às identidades masculinas e femininas. Aceito que a ambivalência seja alocada numa categoria semântica chamada "feminino", mas não porque isso faça parte de uma pretensa essência feminina, e sim porque se trata de uma associação construída e reforçada ao longo de milênios de representação cultural da mulher.

Também penso o seguinte: se aceitarmos que nos relacionamentos as mulheres "pensam demais" e os homens "apenas aproveitam o momento" (duas outras afirmações categóricas demais para serem adotadas sem questionamentos), isso se deve a questões muito mais complexas, preponderantemente de ordem cultural, do que uma característica intrínseca a cada gênero.

Ainda assim, concordo com a ambivalência gestual (puxar-afastar) da figura. No entanto, vejo pouca dubiedade na expressão de seu rosto. Sua pele branca (fria, distanciamento) em contraste com a pele avermelhada do amante (quente, desejo) sugere medo e tristeza. Seus olhos e lábios estão úmidos. Seu nariz, congestionado. Se ela ainda não chorou, vai chorar já já. E talvez o amante nem perceba.

***Atenção! A partir daqui, spoiler do filme "Me chame pelo seu nome".***

Ela chora porque sabe que aquilo ali não vai durar. Não posso deixar de pensar que é esse tipo de saber que o amor por Oliver deixa em Elio. A dor dessa primeira perda é um tipo de iniciação fundamental cujo ensinamento se leva para toda a vida. Cartola chama essa herança de cinismo. Acho que é isso mesmo, ainda que não seja a única coisa que a gente leve destes amores.

Elio com Oliver, Marzia com Elio, receberam sua primeira dose de cinismo. Um dia seu choro não será tão copioso e dolorido, e suas lágrimas estarão mais contidas, como aquelas que quase caem pelo rosto da moça de Maria Kreyn.

Mas como bem disse o pai de Elio: que sorte viver um amor assim.

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"Fora do texto, não há salvação."

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