O presente
Não lembro em que ano foi, nem se era de aniversário ou de Natal. Depois de incontáveis sabonetes perfumados, mantas e outras escolhas equivocadas, parece que eu tinha acertado. O agradecimento, sempre sincero e carinhoso, veio acompanhado, naquele dia, de uma inequívoca expressão de satisfação. Era uma conjunção diferente nas linhas do rosto, um tiquinho de estridência na voz, que não deixavam dúvida: a Avó tinha gostado.
O presente era uma galinha d’Angola de cerâmica, preta e bojuda, com as asas pintalgadas de branco, o biquinho laranja e a cabeça levemente virada para o lado. Uma galinha de olhar simpático, sério e irreverente.
A ave ficou empoleirada no armário da Avó desde então. Testemunhou mais alguns almoços de família, visitas cada vez mais raras, os primeiros sinais de confusão. Permaneceu de guarda na copa enquanto o dia a dia da Avó passou ao quarto, depois à cama. Só saiu dali ontem, algumas horas depois do sepultamento. Lembrança e troféu egoísta do meu sucesso em fazer aparecer no rosto dela um agrado genuíno, uma alegria quase infantil.
Em que ano foi também não lembro, mas as galinhas começaram a aparecer aqui em casa. Antes ou depois do presente da Avó? Mais ou menos junto? Não necessariamente nesta ordem, mas: uma galinha porta-chaves; uma galinha-açucareiro; um pano de prato enfeitado com uma galinha pintada à mão; uma galinha amarela com pintinhas pretas e uma galinha azul, tipo da Maggi, bem pequenininha; uma galinha de barro do Vale do Jequitinhonha e um pingente de galinha, também de lá.
Galinhas vindas até mim por mãos de mulheres, por herança ou por presente: uma prima querida, a então cunhada de extremo bom gosto, uma amiga autêntica e inteligente, minha mãe, as doces e valentes artesãs mineiras.
O fato é que tenho pensado muito em galinhas nos últimos tempos. Preparando material para um curso, encontrei uma análise da música “A galinha”, da peça Os saltimbancos — o disco com essas músicas foi o que eu mais amei na minha infância. A galinha é ameaçada de virar canja quando não consegue mais botar ovos. Sempre uma operária exemplar, sua tolerância à opressão tem limites. Ela foge e se junta à trupe de animais (um cachorro, uma gata e um jumento) para experimentar uma vida mais livre, em que possa cantar “na ronda, na crista, da onda”.
A galinha simbólica junta-se às minhas galinhas materiais. Difícil não refletir sobre o trabalho doméstico e não remunerado, muito árduo, pouco valorizado e raramente partilhado. Como o feito pela Avó, pelas mulheres do Vale do Jequitinhonha, e mesmo por minha mãe, minha então cunhada, minha prima, minha amiga — mulheres a quem foi permitido trabalhar “fora”, desde que nunca deixassem de trabalhar em casa.
Ironicamente, o Avô era mestre de obras em uma granja industrial. Construía ali estruturas para que as galinhas operárias realizassem seu trabalho. Depois da morte dele, a Avó passou (voltou?) a criar galinhas no quintal. Não exatamente por isso, mas lá do seu jeito, ocupou um lugar na crista da onda.
Daqui do sofá olho para a galinha d’Angola preta e bojuda, acomodada na geladeira e cercada por suas companheiras. Dialogo com a Avó sobre mulheres e trabalho, sobre autonomia e submissão, sobre a respeitável galinha-choca e sobre a estigmatizada galinha-fácil — os dois lugares em que nos situam no poleiro.
Um diálogo improvável, só possível pela mediação dessa ave de cerâmica. Ela me olha, séria e irreverente, sem respostas, oblíqua.
Para Mariana, com amor e saudades. Curitiba, 29 de julho de 2019.