Se a Ideia está crescendo, é porque tem sido bem alimentada pela incoerência

O ataque à manifestação pacífica de ontem à noite, em frente ao prédio da Polícia Federal em Curitiba, baseia-se em efeitos de verdade tão frágeis quanto os que têm procurado justificar as assimétricas ações de combate à corrupção. Nos dois casos, o que se vê é um aumento do número de pessoas que, mesmo sem defender as materialidades de cada caso, entendem que é necessário defender as Ideias representadas. E fazem isso com alegria, o que deixa muita gente bastante despeitada.

Adriana Meis
6 min readApr 8, 2018
Tiro, porrada e bomba: força bruta para tentar destruir Ideias que, apesar de toda a violência, não param de crescer.

No discurso que fez ontem em SBdoC, Lula disse que deixou de ser uma pessoa para se tornar uma ideia. Lula é um orador excelente, carismático e com grande talento retórico: uma associação como essa faz sentido para pessoas com diferentes níveis de capacidade de abstração. Um dos possíveis sentidos resulta no seguinte princípio: quanto mais frágil, em termos materiais, for o EFEITO DE VERDADE* das acusações feitas contra a pessoa Lula, mais se fortalece uma “ideia Lula”.

Explicando melhor: quanto mais assimétrico e parcial for o tratamento dado pelo aparelho judiciário e pela mídia majoritária aos crimes atribuídos ao ex-presidente — em relação a outros crimes, com materialidades eventualmente mais consistentes, atribuídos a outras personalidades do cenário político brasileiro — mais fácil se torna a transfiguração da pessoa em uma ideia. Em semiotiquês, poderíamos dizer que Lula, enquanto figura (elemento do mundo natural), passa a estabelecer com um tema (um conceito, uma ideia) uma relação simbólica com certos efeitos de sentido bastante estáveis, que pouco são perturbados com a variação de contextos.

Essa operação resulta da desconsideração das materialidades. Ora, se os fatos podem ser distorcidos para justificar o ódio a A, mas a recíproca não é verdadeira com B, o problema não está nos fatos, e sim em A. O que há em A que tanto incomoda? As ideias que representa. E então juntam-se aos defensores incondicionais de A (que também pouco levam em conta certas materialiadades em seu princípio de adesão) aqueles que defendem a Ideia representada por A, colocando em temporariamente em suspensão a crítica às materialidades que poderia enfraquecer a relação simbólica.

Odiada por uns e adorada por outros, a Ideia é a mesma: a ideia de uma ascensão social, econômica e política de grupos minoritários; o rompimento de certas lógicas de ocupação de lugares de fala e de poder; uma distribuição de recursos de toda ordem sob perspectivas um pouco mais igualitárias; uma leve, suave, incipiente compensação dos efeitos negativos das lógicas meritocráticas do modo de produção capitalista.

Note-se que estes aspectos da Ideia estão longe de terem sido satisfatoriamente implementados nos anos em que o governo girou quase imperceptivelmente à esquerda. E esta é a crítica que se deve fazer às materialidades que figurativizam a Ideia. No entanto, ainda que fraca e insuficiente, a materialização da Ideia resultou em uma forte e rápida reação a ela, realizada e/ou amparada por diverosos atores e instituições sociais, tanto nos campos do material quanto do simbólico. Diante deste perigo iminente, muitos colocaram em segundo plano a crítica à insuficiência ou ao equívoco das materialidades: é preciso preservar a Ideia.

As pessoas que estiveram ontem na sede da Polícia Federal em Curitiba, na área reservada aos chamados apoiadores de Lula, têm relações de toda ordem com esta Ideia. Algumas são mais próximas da figura (semiótica) do ex-presidente, outras mais alinhadas ao tema que esta figura representa. Era um agrupamento pacífico, quase festivo. Havia música e percussão; bandeiras e faixas; cantos e palavras de ordem; vendedores de sanduíches, de doces, de bebidas e até um brechó; tinha banheiro químico com papel higiênico. Do “lado do Lula” havia alegria, e as pessoas estava ali por amor (à pessoa, à Ideia ou à uma combinação difusa de ambos). Não tinha nada disso do outro lado: só panelas, desprezo e obtusidade.

Risco à segurança pública em frente à Polícia Federal em Curitiba: pessoas conversam e completam álbum de figurinha enquanto Lula não chega.

Os policiais que observavam tudo isso do lado de dentro dos portões e ao circular em meio ao grupo tiveram bastante tempo para ser certificar de que o clima era tranquilo. Que as pessoas estavam ali para acolher, oferecer apoio ou solidariedade. Não havia ameaça. Ao menos, não ameaça material. Mas quando o helicóptero que trazia Lula se aproximou do prédio da PF, estes mesmos policiais aproveitaram que os manifestantes olhavam para o céu, atraídos pelo barulho do motor, para soltar bombas de efeito moral e de gás pimenta e para atirar com balas de borracha.

Não houve provocação. Não houve tentativa de invasão. Não houve nada que justificasse um ataque, apesar das alegações mais explícitas ou mais sutis que vêm sendo feitas por alguns veículos de comunicação.

O que havia, sim, era uma ameaça simbólica. É muita desfaçatez que tal Ideia seja defendida na fuça de uma instituição que tem agido para sufocá-la. Que as pessoas não tenham medo de manifestar suas convicções e de defender positivamente aquilo em que acreditam. Que haja em Curitiba quem não se alinha com a atitude reacionária que a cidade vem projetando para o restante do país. E mais: que tal alegria e certeza estejam começando a atrair quem olhava com desconfiança para a Ideia.

Ontem, entre os que foram atacados enquanto se distraíam com a chegada do helicóptero, havia pessoas idosas e crianças; casais de moradores do bairro; curiosos que foram acompanhar a movimentação, talvez para fechar a programação do sábado à noite; trabalhadores informais, que foram vender comida e bebida; moradores da rua que dá acesso à PF e que, simpatizando ou não com Lula, não têm culpa de serem vizinhos daquele prédio. Bomba e bala em gente pacífica, tranquila e — pecado dos pecados — alegre.

A mesma fragilidade material que tem embasado certas atitudes parciais e assimétricas em relação aos eventuais culpados por crimes de corrupção também caracteriza a justificativa para a violência e a truculência dos ataques perpetrados pelas forças de "segurança". Esta entidade difusa, que podemos chamar de Eles, não está preocupada com a corrupção ou com a impunidade. Está preocupada com o crescimento da Ideia. Não só aquela representada pelo Lula, mas também aquela representada, a exemplo da noite de ontem, pela tranquilidade e alegria de quem se sente do "lado certo", do lado da defesa do direito ao exercício da cidadania.

Com o meu relato — e os relatos de muitos outros que estavam lá ontem — , espero contribuir para mostrar a fragilidade do EFEITO DE VERDADE de outros discursos, notadamente aqueles da mídia de massa, que buscam culpabilizar os manifestantes. Gostaria que as pessoas refletissem sobre qual Ideia está sendo sufocada aqui; tentem colocar em suspensão as críticas (válidas e pertinentes) às materialidades do partido X ou do partido Y, da "esquerda" ou da "direita", e defendam a Ideia do direito a um exercício de cidadania que está sendo retirado de todo mundo. Talvez um dia você precise dele, ainda que não precise agora, na medida em que sua posição socioeconômica não te faz alvo imediato de violência física ou simbólica.

*Efeito de verdade, em semiótica, refere-se à percepção das pessoas sobre a veracidade de um fato, de um discurso, de uma narrativa. O uso da palavra "efeito" busca mostrar que nossa percepção sobre o que é "verdadeiro" ou "falso" depende dos recursos utilizados pelo enunciador (uma pessoa, uma rede de televisão, a própria natureza) para nos fazer acreditar ou desconfiar de alguma coisa.

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