Sobre ir para praia ou se locomover em Curitiba sem carro: salve-se quem puder e os outros que se lasquem

Adriana Meis
6 min readJan 22, 2019

Em abril próximo vai fazer dois anos que não tenho mais carro. Apesar de hoje ser difícil encaixar as despesas com carro no meu orçamento, abrir mão deste modal de transporte foi mais privilégio do que restrição. Este privilégio tem a ver com o lugar onde moro, com minha profissão, com o fato de eu não ser responsável, nem parcial e nem totalmente, pela gestão de uma família com filhos pequenos ou com pessoas que precisem de cuidados especiais.

Sanderinho, a qualidade do transporte coletivo me faz ter saudades de você.

Quando fiz doutorado-sanduíche na universidade de Bologna, em 2013, experimentei uma vida de grande autonomia, podendo ir e vir (quase) sem medo, dia e noite, tendo acesso a um transporte coletivo — público ou privado — de qualidade. De volta ao Brasil, decidi que queria essa vida também aqui, na medida do possível.

Encantada com a qualidade do transporte público em Bologna e também com o charme da motorista.

Não ter mais carro e continuar tendo conforto — em um país e em uma cidade que privilegiam o transporte em automóvel privado — exigiu uma adaptação gradual no estilo de vida.Passei a andar mais a pé e de ônibus, inclusive à noite. Depois, me mudei para mais perto do centro e dos bares que gosto de frequentar; por fim, vendi o carro. Já dependia muito menos dele e surgira a oportunidade de participar de um fantástico congresso de semiótica em Paris. Não tive dúvida em usar o valor do carro para financiar a viagem (esta é a vida de pesquisadoras sem vínculo e/ou apoio institucional — em outras palavras, a gente paga pra trabalhar).

A vida sem carro foi tranquila. Tendo, como já disse, circunstâncias privilegiadas, me viro bem de bicicleta, à pé, de ônibus, táxi (mais recentemente com Uber, apesar da bronca inicial) e com as valiosas caronas dos amigos e amigas. O que me limita é o cachorro. Exceto o táxi/Uber, nos outros modais não consigo levar o Lego. E quando é preciso viajar, daí o negócio complica.

Para ter cachorro, mesmo que seja um guapequinha como o Lego, quase que é preciso ter carro. Como levar no veterinário ou em outros lugares se os ônibus não aceitam o transporte de animais?

Algumas vezes, aluguei carro. Mas senti a impotência da minha condição de consumidora quando, da última vez, a locadora entendeu que os poucos pelos no banco do automóvel requeriam a higienização de 155 reais, e não limpeza de 30. Quem aluga o carro está constantemente sujeito a uma porção de penalidades, muitas delas com critérios definidos unilateralmente. Além disso, alugar um carro para viajar os 100 km até o litoral e depois deixar o carro dias parado não vale a pena.

A saída foi tentar a viagem com o cachorro pela Viação Graciosa, a única — infelizmente — empresa de ônibus que faz a linha Curitiba-Litoral.

A empresa esclarece que animais de até 10 quilos, desde que em caixa de transporte, podem viajar com o passageiro na cabine do ônibus. Se algum passageiro sentir-se incomodado, o animal deve ser colocado no bagageiro.

O bagageiro não tem ar condicionado.

Se alguém se sentir incomodado com o cachorro, ele vai no bagageiro. Até o fim da viagem, já morreu de hipertermia. Não haveria uma outra forma de conciliar o transporte dos animais e o conforto dos demais passageiros? Bom, nem e-commerce próprio a empresa tem, imagina se ela se preocuparia em pensar nisso.

Fiz três trechos Curitiba-Matinhos neste mês de janeiro. Os motoristas estavam cansados (um deles disse que havia dormido apenas 4 horas entre um e outro turno de trabalho de 12 horas). Tinham que parar o carro na estrada pra ver barulhos. Nos dois últimos, o ônibus teve problemas com o ar condicionado — e lá fora, 35 graus. Se ali dentro já estava calor, imagina lá embaixo, com as malas.

Felizmente, o Lego ficou relativamente quieto (desde que eu não parasse de fazer cafuné neste chantagista barato ❤) e pode viajar na cabine. Mas o problema com o ar tornou a viagem dele — e, por extensão, a minha — bem mais tensa e desconfortável. E no meio de todo este incômodo, me veio um pensamento, que é o foco deste texto: "assim que der, vou voltar a ter carro".

Os carros que tive foram muito úteis para mim. Eles não devem ser demonizados, pois há que se levar em conta o viés de gênero — mulheres, mais responsáveis pelo trabalho reprodutivo, dependem muito do carro (ver, por exemplo, este artigo que discute como os projetos de sustentabilidade das cidades por vezes aumentam a desigualdade entre homens e mulheres), sem falar no risco de assédio.

Quem, em sã consciência, vai preferir ser apalpada e encoxada diariamente no ônibus, se puder ter mais segurança com o carro? (Em resumo, diminuir os carros nas ruas tem a ver também com políticas públicas de combate à desigualdade de gênero e à violência contra a mulher, conforme tenho discutido nas minhas pesquisas.)

No entanto, o que me fez pensar em ter carro novamente não foi a qualidade do carro em si, mas o péssimo serviço dos modais coletivos.

Precisamos batalhar pela melhoria do transporte público coletivo!

Uma parte do problema que a gente tem vivido como país tem a ver com isso: não lutamos para que a alternativa "ruim" melhore: brigamos para poder sair da alternativa ruim, sem nos importar com os que nunca poderão sair dela.

O SUS é ruim? Pra que brigar pelo SUS, eu vou no plano de saúde.

A educação pública é ruim? Pra que me envolver com a escola e com a comunidade, eu vou é depositar meu filho numa escola particular e torrar a paciência das professoras.

Os governantes são corruptos? Pra que me informar e participar da vida pública, eu vou é votar num charlatão que brada contra a corrupção (e que nem por isso é menos corrupto do que aqueles que acusou).

Quem pode, pode, quem não pode se sacode.

O que eu quero dizer é: em vez de pensar em voltar a ter carro, eu deveria pensar em brigar para que a opção de mobilidade que eu escolhi — o transporte coletivo, público ou privado — seja bom. Isso não traz benefícios apenas a mim. Traz benefícios coletivos (inclusive para quem prefere/precisa usar o carro).

O que motivou esta reflexão foi o transporte rodoviário feito pela Graciosa, mas tem um exemplo de consequências muito mais amplas, que é o transporte público urbano de Curitiba. Prefeitura e empresas se aproveitam desta lógica perversa do que salve-se-quem-puder.

O serviço é ruim. Quem pode escapa dele, mas não batalha pra que ele melhore. E então são mais carros nas ruas, o trânsito é mais caótico, a segurança é prejudicada pela menor circulação de pessoas nos espaços públicos. Diminui o número de passageiros, baixa a rentabilidade, as empresas cobram aumento na passagem. E, com isso, Curitiba, que já foi modelo de mobilidade urbana, hoje tem a passagem mais cara do Brasil, uma integração que não funciona, linhas e carros que não dão conta de transportar a cidade.

Quando surgiram os aplicativos com horários de ônibus, a URBS, empresa de economia mista que gerencia o transporte público de Curitiba, quis proibi-los! Afinal, passageiro que não sabe o horário do ônibus não pode reclamar de atraso. Hoje a gente sabe os horários, ainda que eles não sejam cumpridos ou que o veículo esteja tão lotado que não se possa entrar nele.

Mas, voltando à ida para a praia. Há dois negócios que achacam aqueles que querem/precisam viajar para o litoral do Paraná:

  1. o monopólio da Graciosa, empresa que presta um serviço capenga, quando não perigoso, sem qualquer preocupação em atrair outros perfis de passageiros (eu teria algumas sugestões sobre o transporte de animais domésticos e de bicicletas) que não aqueles que usam a empresa por pura falta de opção;
  2. a concessionária que administra o pedágio, cuja tarifa é de absurdos R$ 20,90.

A mesma condição vantajosa para essas duas empresas — o fato de serem praticamente compulsórias — é também o seu ponto fraco. Isso, obviamente, se decidíssemos deixar de utilizar os serviços dessas empresas por algumas horas, alguns dias, algumas semanas.

Se a gente se organizasse e se dispusesse a sacrificar parcialmente as férias, o lazer, os negócios, deixando por algum tempo os ônibus nos pátios e as cancelas obstruídas, talvez conseguíssemos algum benefício coletivo.

Ou seja — e aqui vale para outros problemas da nossa sociedade — se a gente se dispusesse a uma parcial e temporária diminuição do conforto individual em nome de um benefício coletivo, muita coisa poderia melhorar.

Não é uma solução estrutural nem de longo prazo — o problema é mais embaixo — , mas seria um saudável exercício.

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