Manifestações políticas e divisão sexual do trabalho

Adriana Meis
4 min readApr 11, 2018

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A culinarista e apresentadora Bela Gil em meio às mulheres que estão visitando ou integrando o acampamento Lula Livre, no entorno da Polícia Federal, em Curitiba. Foto de Ricardo Stuckert.

Ontem, ao visitar o acampamento Lula Livre nas imediações da Polícia Federal em Curitiba, Bela Gil agradeceu as pessoas que estavam ali, instaladas com bastante desconforto, para lutar por uma causa que também é dela.

A gente tem mais é que agradecer mesmo a disponibilidade destas pessoas. Ou melhor: não só agradecer, mas reconhecer, ajudar, dar visibilidade. Quem puder estar lá também deve ir, pois é a presença física que materializa a força da proposta que está sendo defendida.

No entanto, nem todo mundo pode ou sabe como fazer isso.

Primeiro, o saber. O acampamento é como qualquer outra organização social. É mais fácil começar a participar de uma organização desconhecida quando existe alguém que possa te apresentar, que possa explicar como as coisas funcionam por ali. Ou quando você já participa de outra organização que passa a integrar aquela.

Existem normas, etiquetas, procedimentos e comportamentos a serem seguidos. E isso é fundamental para não desvirtuar a proposta e para evitar situações que venham a aumentar ainda mais a rejeição — orgânica ou estimulada — da “opinião pública” em relação ao acampamento.

Nesta modalidade de engajamento — acampamento, vigília — integrantes de partidos políticos, sindicatos, associações e movimentos sociais saem na frente em termos de mobilização, pois contam com o apoio de sua própria organização, em termos de estrutura e de sensação de pertencimento.

[E por isso essas organizações são tão importantes. Se há problema com elas, é preciso resolvê-los, mas não exterminá-las. Acabar com sindicatos e partidos é uma forma de minar a mobilização popular, e não à toa isso aparece no discurso de projetos de poder não democráticos.]

E existem aqueles que sabem como participar, mas não podem.

Uma das primeiras coisas que pensei quando visitei o acampamento foi: quem está cuidando da parte prática da vida destas pessoas enquanto elas estão aqui? Quem está plantando, colhendo, alimentando os animais nos assentamentos? Quem está cuidando da casa e das crianças? Quem está dando comida pro cachorro, lavando roupa, indo no banco pagar conta, levando parente no médico?

Participar de uma ocupação a centenas de quilômetros de casa é um trabalho importantíssimo que estas pessoas fazem por nós. E cuidar da vida prática destas pessoas, para que elas possam estar aqui protestando, é um trabalho igualmente fundamental.

A proposta que este acampamento defende vai muito além da liberdade do Lula. Ela tem a ver com a ampla democratização social. E nunca vai haver democratização enquanto não houver valorização e partilha equânime do trabalho de reprodução: o trabalho invisível que garante a saúde e o bem-estar físico e emocional do trabalhador.

Pelo pouco que sei dos assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, as pessoas são bastante solidárias e participativas. Talvez o trabalho de cuidado das casas, das plantações e das famílias daqueles que estão aqui acampados esteja sendo assumido pela comunidade.

Já a vida na cidade eu conheço bem, e sei que a nossa sociedade raramente oferece este tipo de apoio.

Quem tem casa e filhos sabe o quanto esse cuidado é trabalhoso, toma tempo e é IMPOSSÍVEL de ser deixado de lado, ou ser deixado para amanhã. Esse trabalho desvalorizado e não remunerado ainda é feito majoritariamente por mulheres. E se uma mulher quer trabalhar em outras coisas — com mobilização política, inclusive –, ela só vai poder fazer isso se tiver outras pessoas com quem dividir ou para quem delegar o trabalho de reprodução.

[Delegado normalmente para outra mulher, num ciclo interminável de exercício feminino de trabalho pouco ou nada remunerado e socialmente desvalorizado.]

Neste sentido, nota-se que a grande revolução depende de uma pequena revolução, diária e invisível, mas que está na base da democratização almejada por todos. Esta pequena revolução é a da louça lavada, da pia limpa, da criança de banho tomado e colocada na cama, da partilha igualitária das preocupações materiais e abstratas que envolvem a vida em conjunto na mesma habitação.

Não se trata de defender que cada-um-cuide-da-sua-vida-e-assim-o-país-vai-pra-frente. Trata-se de chamar atenção para o fato de que não se pode rebaixar a importância das "pequenas" atitudes para a conquista da tal democracia.

A política eleitoral e partidária, dos movimentos sociais e dos sindicatos é fundamental. Mas a do dia a dia também. Bela Gil segue esse princípio quando diz que comer é um ato político. Também são políticas as nossas atitudes em relação à casa em que moramos e às pessoas com quem partilhamos um teto, filhos ou uma vida.

No fim das contas, é como disse uma amiga: o aviso “não arrumei a cama porque fui pra revolução” não cola mais. Comece a lutar pela democracia arrumando os troço antes de sair pra manifestação, para que tua mãe ou tua mulher também possam ir.

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