Um manifesto para o resgate do feminismo-raiz

Adriana Meis
8 min readAug 17, 2020

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Impressão de tela da página do Facebook da organização da greve das trabalhadoras da limpeza das estações de metrô e trem de Paris, funcionárias da terceirizada Onet.

Resenha de: VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. Trad. Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu, 2020. 144 p.

A cientista política e ativista Françoise Vergès nasceu em Paris e foi criada na ilha da Reunião, departamento ultramarino francês no Oceano Índico. Seu ensaio Um feminismo decolonial, publicado originalmente em 2019, busca repropor o feminismo como teoria anticapitalista, antirracista e antissexista a partir do exame do trabalho de limpeza e de cuidado, doméstico ou institucional, realizado especialmente por mulheres racializadas. A edição brasileira do livro foi lançada em maio de 2020, na escalada da pandemia de coronavírus.

Comecei a leitura no mesmo dia em que um decreto incluía os serviços domésticos como setor essencial durante o lockdown no estado do Pará (1), uma situação exemplar para se observar as questões abordadas no livro. A notícia sobre o decreto lembra que 92% do trabalho doméstico no Brasil é realizado por mulheres, 68% delas negras, e que uma de nossas primeiras vítimas fatais de covid-19 foi uma empregada doméstica contaminada pela patroa. Outra notícia daquela mesma semana alertava que pessoas pretas e pardas estavam sendo internadas e morrendo da doença cinco vezes mais do que as brancas (2).

Apesar disso, ainda em maio alguns municípios decidiram reabrir o comércio e outros espaços coletivos, desde que atendidos rígidos protocolos de higienização: limpar mais, com mais frequência, com produtos mais fortes. Quem faz essa limpeza? Como fica a saúde e a segurança dessa pessoa? O caráter essencial desse serviço o torna mais valorizado ou melhor remunerado? Como diz o antropólogo David Graeber, trabalhos como o de limpeza têm por finalidade manter ou aumentar a liberdade dos outros, e quanto mais servem para ajudar, menos se recebe por eles (3).

Reflexões sobre os efeitos sociais da covid-19 estão presentes no prefácio da edição brasileira que Vergès redigiu em março de 2020: “[…] o confinamento imposto pelos governos de países europeus para frear a pandemia do vírus torna ainda mais visível a divisão profunda entre vidas tornadas vulneráveis e vidas protegidas” (4).

Dois textos esclarecedores a respeito de conceitos usados pela autora antecedem esse prefácio. Em “Por um feminismo radical”, Flávia Rios (5) apresenta a obra e seus principais pontos, adianta sobre os julgamentos ácidos feitos por Vergès e adverte sobre a expressão mulheres racializadas: no livro, o termo diz respeito tanto a pessoas negras e indígenas quanto a não brancas e não ocidentais, na condição de refugiadas e de imigrantes, e mesmo a cidadãs cujas marcas sociais diacríticas as impedem de exercer e usufruir sua cidadania. Já no segundo texto, as tradutoras esclarecem como se marcou, no português, a diferença conceitual entre descolonial — processo de desligamento das metrópoles das ex-colônias — e decolonial — “movimento contínuo de tornar pensamentos e práticas mais livres da colonialidade” (6). Elas também explicam a manutenção em português da escrita inclusiva de gênero adotada por Vergès, como em colonizados/as, por exemplo.

Após esses três textos vem uma espécie de prólogo — “Invisíveis, elas ‘abrem a cidade’” — e os dois capítulos que compõem a obra — “Definir um campo: o feminismo decolonial” e “A evolução para um feminismo civilizatório do século XXI”.

O prólogo menciona a vitória que as trabalhadoras responsáveis pela limpeza da Gare du Nord, em Paris, obtiveram após 45 dias de greve em 2018 (Vergès não esclarece qual teria sido essa vitória). O trabalho dessas mulheres, empregadas da multinacional de terceirização de serviços de limpeza Onet, é um estudo de caso retomado pela autora no final do segundo capítulo. Trabalhadoras como essas tornariam mais confortável a vida da classe média burguesa, incluindo aí mulheres que têm como “[…] passatempo discutir a legitimidade das coisas, reclamar que não querem ser ‘incomodadas’ no metrô ou aspirar postos de liderança de grandes empresas” (p. 26).

As brancas podem fazer isso porque as racializadas cuidam de suas casas, de seus filhos, de seus locais de trabalho e das necessidade sexuais dos homens de suas famílias. Essas e outras demandas desqualificadas por Vergès seriam fruto de um feminismo civilizatório, ou feminismo branco-burguês, ou machista, ou corporativo. Em oposição, a autora propõe um feminismo decolonial, tanto para resgatar a luta de sua apropriação neoliberal quanto para fazer frente a um feminismo contrarrevolucionário que “[…] assume a forma de um femonacionalismo, de um femoimperialismo, de um femofascismo ou feminismo de mercado”, como avisa Andi Zeisler (7).

Delimitações conceituais desses tipos de feminismo estão distribuídas pelos dois capítulos, que não se atêm marcadamente aos assuntos de seus títulos. Ainda que o primeiro proponha uma definição do feminismo decolonial e o segundo trate do percurso que o feminismo seguiu até ser ‘cooptado’, seus propósitos se misturam. Diante disso, organizo a resenha pelos aspectos que o livro apresenta a respeito dos feminismos.

Responsável pela aceitação do feminismo na última década, o civilizatório:

  • é obcecado pela sexualidade dos homens racializados e pela vitimizacão das mulheres racializadas;
  • não leva em conta a escravidão e as políticas de colonização e ignora como tais fatores agem sobre a divisão sexual;
  • na verdade, ele nasce com a colônia quando seu discurso europeu sobre a opressão compara as mulheres aos escravos.

Esse feminismo não questiona as estruturas capitalistas e suas políticas de ajuda às mulheres do Sul global são narcisistas. Nos anos 1970, nas oportunidades em que os direitos das mulheres foram discutidos por organismos internacionais, ele sufocou as abordagens de feministas africanas e asiáticas, negras e muçulmanas; interferiu nas narrativas das vitórias dos direitos das mulheres colocando como conquistas individuais aquilo que resultou de esforço militante e coletivo de enfrentamento a aspectos estruturais da desigualdade.

As pautas desse feminismo, paradoxais:

  • pedem liberdade sexual e repressão às profissionais do sexo;
  • direito de usar biquíni ou minissaia e proibição do uso do véu islâmico;
  • lutam por paridade profissional e salarial mas exploram o serviço doméstico mal pago e precarizado;
  • afastam-se de movimentos considerados incômodos, como o operário, o queer, o anti-imperalista.

Por fim, ele adota o Islã como inimigo em substituição à matriz patriarcado branco, Estado e capital, tornando-se um femonacionalismo.

Femonacionalismo ou nacionalismo femocrático diz respeito, na definição de Sara Ferris, à “[…] exploração de temas feministas por nacionalistas e neoliberais islamofóbicos (que podem ser ao mesmo tempo contra a imigração) e ao modo como feministas ou 'femocratas' contribuem para a estigmatização de homens muçulmanos” (8). É resultado de um feminismo branco que teria passado de uma situação de ambivalência ou indiferença à questão racial e colonial para uma posição racista e nacionalista; ainda que não proclame os mesmos objetivos do nacionalismo xenófobo, compartilha alguns de seus pontos, como a adesão a uma “[…] missão civilizatória que divide o mundo entre culturas abertas à igualdade das mulheres e culturas hostis à igualdade das mulheres” (p. 90).

Campanhas femonacionalistas têm a ver com a reconfiguração do trabalho na França a partir dos anos 1980, especialmente no setor de limpeza e cuidados; esse trabalho teria ‘salvado’ as mulheres racializadas das ‘culturas hostis’ ao mesmo tempo em que permitiu à mulher branca burguesa ter a sua vida profissional.

Tal cooptação da luta das mulheres seria um dos motivos para Vergès propor um feminismo decolonial que objetiva “[…] a destruição do racismo, do capitalismo e do imperialismo” (p. 28), cujas teorias e experiências mais instigantes têm vindo dos movimentos ligados à terra. Distingue-se por sua inscrição no amplo movimento que revisa a narrativa europeia do mundo e que desenvolve ferramentas próprias de difusão de conhecimento. Não se entende como uma nova ‘onda’ e sim como uma nova etapa do processo de decolonização; remonta ao feminismo de quilombagem e sua promessa radical de futuro, e por isso é uma luta que não deixa de lado a alegria. Não quer melhorar o sistema vigente e sim combater todas as formas de opressão. Sua proposta se reaproxima do termo feminismo porque “[…] ancora-se na consciência de uma experiência profunda, concreta e cotidiana de uma opressão produzida pela matriz Estado, patriarcado e capital, que fabrica a categoria ‘mulheres’ para legitimar as políticas de reprodução e de categorizacão [assignation], ambas racializadas” (p. 51, grifo no original). Nesse sentido, a análise dos trabalhos de limpeza e de cuidado nas configurações atuais — europeias, mas não só — é sua principal tarefa.

O ensaio não tem propriamente uma conclusão, uma consolidação de suas ideias e propostas. Depois de analisar o caso das trabalhadores da Onet para ilustrar a racialização do trabalho e a permanência de políticas de colonialidade, a última subseção propõe um pensamento utópico de reconexão com a potência de imaginação do feminismo, que mais sugere o início de uma nova conversa do que o encerramento da que vinha acontecendo até ali.

Portanto, para finalizar a resenha, escolho uma menção que Vergès faz ao Brasil:

"A ascensão dos reacionários de todos os tipos deixa algo claro: uma feminista que não luta pela igualdade de gênero, que se recusa a ver como a integração [ao neoliberalismo] deixa as mulheres racializadas à mercê da brutalidade, da violência, do estupro e do assassinato, acaba por ser cúmplice de tudo isso. Essa é a lição a ser tirada da eleição para presidente do Brasil, em outubro de 2018, […] alguns meses após o assassinato da vereadora queer e negra Marielle Franco ( p. 37–38).

Referências

(1) AZEVEDO, Gabriela; SÓTER, Gil; REZENDE, Thaís. Lockdown no Pará tem serviço doméstico como ‘essencial’, contrariando governo federal e MPT. G1 Pará, Belém, 7 maio 2020. Disponível em https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2020/05/07/lockdown-no-para-tem-servico-domestico-como-essencial-contrariando-governo-federal-e-mpt.ghtml. Acesso em 28 maio 2020.

(2) MUNIZ, Bianca; FONSECA, Bruno; PINA, Rute. Em duas semanas, número de negros mortos por coronavírus é cinco vezes maior no Brasil. Pública, 7 maio 2020. Disponível em https://apublica.org/2020/05/em-duas-semanas-numero-de-negros-mortos-por-coronavirus-e-cinco-vezes-maior-no-brasil/. Acesso em 28 maio 2020.

(3) GRAEBER, David. "Il faut réimaginer la classe ouvrière. Entrevista dada a Jospeh Confàvreux e Jade Lindgaard. Médiapart, 16 abr. 2018. [citado por Vergès, p. 125]

(4) VERGÈS, Françoise. Prefácio à edição brasileira. In: VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. Trad. Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu, 2020, p. 21–22.

(5) RIOS, Flávia. Por um feminismo radical. In: VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. Trad. Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu, 2020.

(6) DIAS, Jamille Pinheiro; CAMARGO, Raquel. Nota da tradução. In: VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. Trad. Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu, 2020, p. 13.

(7) ZEISLER, Andi. We Were Feminists Once: From Riot Girl to CoverGirl: tbe Buying and Selling of a Political Movement. New York: Public Affairs, 2016, p. 89–90. [citada por Vergès, p. 89–90]

(8) FARRIS, Sara. In the Name of Women′s Rights. The Rise of Femonationalism. Durham: Duke University Press, 2017. [citada por Vergès, p. 94]

Como citar este artigo:

BAGGIO, Adriana Tulio. Um manifesto para o resgate do feminismo-raiz [Resenha de Um feminismo decolonial, de Françoise Vergès (2020)]. Adriana Meis, 17 ago. 2020. Disponível em: [link]. Acesso em: [data].

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