A bruxa descabelada e a bruxa de aplique

Adriana Meis
6 min readOct 31, 2020

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Dolly Parton e Kathleen Turner: duas mulheres e dois jeitos de envelhecer se complementam para contar uma história de bruxas

Montagem com foto de divulgação da série Tocando o coração (2019), com Kathleen Turner e Dolly Parton, e foto de Kathleen Turner em cena do filme A guerra dos Roses (1989).

Conheço muito bem o nome Dolly Parton, mas pouco do seu trabalho. Lembro vagamente do filme Como eliminar seu chefe (1980) e da música-tema, 9 to 5, cujo refrão me vem à mente mais porque era parte de uma coletânea de trilhas de cinema do que por tê-la ouvido no filme.

Isso e mais uma figura loira e com peitos grandes eram minhas principais referências quando a Netflix me sugeriu Tocando o coração, série de histórias baseadas nas músicas de Dolly Parton e idealizada por ela. Pensei no combo música country + sul dos EUA = republicanos conservadores e encarei o primeiro episódio com muitos pés atrás. E tive que engolir o preconceito com farinha.

Dramalhão com jeitão progressista

Cada episódio trata de uma questão que provoca sofrimento na vida das pessoas diante da intolerância ou da incompreensão. Temos então a moça simpática e sedutora que é hostilizada por outras mulheres, a esposa traída que culpa a amante mas preserva o marido, a mãe controladora e homofóbica, os pais ausentes física e/ou emocionalmente, as amigas que julgam umas às outras, e por aí vai. Tudo muito leve, tipo novelão, às vezes com cenários meios toscos de estúdio, e com um progressismo light e pedagógico para pessoas que estão tentando deixar de ser babacas.

Um problema, a meu ver, é que a maior parte das histórias parece ser sobre e para mulheres, quase como se fosse tarefa nossa resolver esses problemas não só em nós mesmas, mas também nos outros.

Mas eu queria comentar especialmente o último episódio da 1ª temporada, “Velhos ossos”, e o farei revelando a trama.

Caso queira pular essa parte e chegar à reflexão final do texto, corra a tela até o subtítulo “Acabou o spoiler.

Era uma vez uma bruxa…

A história é baseada na canção “These old bones”, de 2002, e fala de Mary, uma mulher meio profeta que vive sozinha no alto de uma montanha e que Dolly teria conhecido em sua infância. Essa mulher planta a própria comida, não gosta de caçar, entende de ervas e chás e lê o futuro de quem a procura para isso em uns ossos velhos que carrega sempre junto de si em um saquinho. Um poderoso madeireiro quer comprar suas terras, mas ela não vende. Os vizinhos, que a respeitam, também não querem vender.

O madeireiro então contrata um escritório de advocacia para que procure convencer os proprietários a fazerem negócio, começando pela mulher-profeta, que pode influenciar os outros. O ano é 1944, muitos advogados homens estão lutando na Segunda Guerra e só sobra uma jovem mulher. O cliente desconfia, mas ela é competente e ambiciosa, e como cresceu naquela região saberá melhor como conduzir as coisas. O cliente se convence quando a advogada propõe uma estratégia malvada: “podemos acusá-la de bruxaria, ainda existem leis relativas a isso”.

Temos então duas mulheres fortes que entrarão em confronto: uma jovem advogada, a serviço de interesses capitalistas, que luta para superar o machismo e o preconceito que impedem o seu reconhecimento profissional, e uma velha “bruxa” que luta para manter o seu direito à terra e a um modo de vida autônomo, menos dependente do mercado e mais respeitoso à natureza e aos meios de subsistência da sua comunidade.

As duas mulheres se conhecem, Mary não se convence a vender as terras e então é levada ao tribunal com a acusação de bruxaria. As coisas parecem estar indo a favor dela pois seu advogado consegue comprovar que as previsões não são falsas e que as pessoas a procuram espontaneamente. Com o caso em risco, a advogada é pressionada pelo cliente a usar informações delicadas para vencer o processo. O fato é que Mary foi estuprada em sua juventude. Como, então, se ela tem um dom, não previu o que aconteceria a si própria?

A advogada se sente mal enquanto constrange a bruxa com esse relato. Ao mesmo tempo, os dados que vai lendo fazem-na se dar conta que ela é justamente fruto daquele estupro, e que fora adotada pelo casal que até então acreditava serem seus pais biológicos. Ao final do julgamento a bruxa revela (o advogado dela é quem sabia disso) que o madeireiro quer comprar as terras não para gerar negócios bons para a comunidade, e sim para abrir uma mina e extrair carvão da montanha. O processo é anulado, a bruxa é liberada, mãe e filha recuperam os laços e tudo termina bem.

É muito significativo que essa mulher sem estudo tenha um tipo de vida autônomo, que seja sábia das coisas da vida e da natureza, que tenha respeito e compaixão pelos animais, que viva do trabalho na terra e de doações da comunidade, que atenda as pessoas sem cobrar. E que ela seja chamada de bruxa quando esse estilo de vida atrapalha os planos do capitalista, cujo dinheiro não é um valor de troca desejado pelos proprietários das terras.

Esse encadeamento de acontecimentos é o que Silvia Federici explica em Calibã e a bruxa: a caça às bruxas do fim da Idade Média e início da Idade Moderna foi estratégico para forçar a transição ao sistema econômico que se consolidaria no século XIX como capitalismo. Apartar as mulheres da terra, do conhecimento da natureza, da vida comunitária e do trabalho social e de produção foi indispensável para que esse sistema pudesse ser largamente implantado.

[acabou o spoiler]

Corpo velho, gordo e político

Muita miopia de minha parte achar que uma cantora que enfrentou o machismo da indústria da música country e que fez um filme e um disco que criticam a exploração do trabalhador entregaria uma série moralista, preconceituosa ou descaradamente classista. Dentre todos os limites comerciais e ideológicos que condicionam um produto de entretenimento de massa e com as muitas reticências a respeito de representatividade nos episódios, os valores que a série promove são bem avançados no contexto do público para o qual se destina. E “Velhos ossos” me parece o episódio mais ousado nesse contexto, não só pelos valores em jogo no percurso narrativo quanto pela atriz escolhida para protagonizá-lo. E então eu chego no ponto principal deste texto.

Dizem as notícias que Dolly Parton pediu especialmente a Kathleen Turner para fazer o papel da bruxa, o que destoa de outros episódios (nenhum deles tem uma estrela dessa magnitude). Se é um papel que pede uma mulher com características corporais que o senso comum costuma atribuir às bruxas — velha, feia, “desarrumada” — , o enunciador poderia ter escolhido qualquer outra atriz menos conhecida, como nos demais episódios, ou ter recorrido à maquiagem e aos efeitos especiais.

Com essa escolha, parece que Parton quis que os espectadores lembrassem, por exemplo, da lindíssima Kathleen Turner de A guerra dos Roses (1989) quando vissem a bruxa Mary. A mulher Kathleen Turner ajuda a compor a personagem Mary para que Parton mostre uma outra rebeldia dessa personagem chamada de bruxa: a de envelhecer.

Ao escolher alguém cuja figura ficou gravada na cultura pop ocidental como modelo de beleza e aspecto sexualmente desejável, Dolly Parton faz com que nos flagremos: “puxa, como a Kathleen Turner envelheceu!” — é o que você deve ter pensado ao ver a foto no início do texto

Kathleen Turner, velha e gorda, empresta seu corpo para figurativizar a ideia da bruxa, uma mulher que vive de um jeito diferente daquele que se espera: sozinha, autêntica, sem concessões às amabilidades fúteis e ao desrespeito. E também, talvez o que mais toque as mulheres individualmente (mas com repercussões sociais e políticas importantíssimas), é uma mulher que escolheu deixar seu corpo seguir o caminho do envelhecimento e que aceitou mostrá-lo como o corpo velho e gordo protagonista de um produto cultural mainstream.

Vale lembrar também que quem fez esse convite a Turner foi uma mulher também velha, emperiquitada, que tinge os cabelos, modela o corpo com diversas técnicas e que deve ter muitas plásticas no rosto. Ver essas duas mulheres juntas protagonizando suas carreiras e se mostrando do jeito que bem entendem, é um importante posicionamento político — e uma cilada para aqueles preconceitos que permanecem arraigados mesmo no mais desconstruído dos intelectos.

Feliz dias das bruxas.

Como citar este texto:
BAGGIO, Adriana Tulio. A bruxa descabelada e a bruxa de aplique. Adriana Meis, 31 out. 2020. Disponível em: https://adrianabaggio.medium.com/a-bruxa-descabelada-e-a-bruxa-de-aplique-b74e31059dc0. Acesso em: [data].

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